OPINIÃO
A Câncio cansa-me…
Rita Garcia
Pereira, Advogada 05 Agosto 2021, 00:09
Se viver neste país já é um exercício de resistência, ter
memória é, muitas vezes, desesperante. Sou, como tal, das que prefere quem muda
de opinião a quem finja que o faz, apenas para manter a imagem que julga deter.
(Faço o meu
habitual “disclaimer”: reconheço a Otelo o seu papel no 25 de Abril, pelo qual
muitos membros da minha família muito lutaram, e reconheço idêntico relevo,
embora não positivo, no que decidiu fazer a seguir, enquanto Comandante do
Copcon. De acordo com o que me contam, foi sob a sua égide que a minha mãe,
entre centenas de outras pessoas, foi por duas vezes presa, da última vez nada
tendo feito para além de estar a atravessar o átrio da Faculdade de Direito.
Essas semanas em que a minha mãe esteve presa em Caxias, sem acusação ou culpa
formada e de cujos relatos o mais impressivo para mim foi o de Margarida Sousa
Uva, entretanto também falecida, não constam que lhe tenham dado grande saúde e
não demorou muito tempo a morrer. Penso que, compreensivelmente, pesa-me mais a
morte dela do que o peso que lhe atribuem no primeiro dos eventos. Se Otelo não
fez o 25 de Abril sozinho, parece-me que, por força das funções que então
assumia, é o principal responsável por essas outras prisões no designado Verão
Quente de 75. E, por isso, se lhe posso agradecer pela liberdade, não me
consigo curvar perante a sua memória).
Quase a ir de
férias, deparo-me, seguramente que por via do advento da silly season, com um
texto em que Fernanda Câncio decide zurzir em Pacheco Pereira por ter,
alegadamente, mudado de opinião quanto a Otelo.
Pelo que referi
antes, tenho uma posição de grande distanciamento perante a figura do
Comandante da Copcon, à qual não reconheço a craveira intelectual que teimam em
colar-lhe, da mesma forma que não me parece que, num qualquer regime que se
diga democrático, devam ocorrer prisões sem culpa formada e sem a intervenção
de qualquer órgão jurisdicional. Isso sucedeu em Portugal, através da designada
“Operação Turbilhão”, episódio quase nunca referido na nossa História e que fez
várias vítimas.
Dito isto, não
foi sem espanto que li umas linhas da jornalista que dá azo ao título e que se
permite um ataque descabelado a Pacheco Pereira por, alegadamente, ter mudado
de opinião quanto a Otelo, perante um elogio fúnebre que aquele entendeu
fazer-lhe.
Se há coisas na
vida que me parecem estranhas é, ao mesmo tempo que se despediram imensos
jornalistas naquele grupo, Câncio continuar a usar o espaço que, por motivos
que me escapam, detém para os seus ajustes de contas pessoais. Contudo, tem
sido voz corrente e aqueles que dela discordam demasiadas vezes, como é o meu
caso, têm como caminho certo e mais higiénico pura e simplesmente não lerem.
O que me parece
completamente surreal neste artigo é que a sua autora se permite criticar asperamente
um outro pelo que afirma ser falta de memória e pela invocada desonestidade
intelectual.
A sério, Câncio?
A sério que alguém acredita que já não há quem se lembre de umas certas
piruetas dadas a propósito de um namorado de quem se esperava que comprasse uma
casa de milhões?
Se viver neste
país já é um exercício de resistência, ter memória é, muitas vezes,
desesperante.
Sou, como tal,
das que prefere quem muda de opinião a quem finja que o faz, apenas para manter
a imagem que julga deter.
E esta é uma
linha que procurarei nunca ultrapassar, mesmo quando o cansaço nos parece
toldar o raciocínio.
Facto é que a
Câncio (também) me cansa, embora saiba que o mar de Porto Santo está próximo e
tratará de renovar as energias, enquanto a memória evitará que volte a cair no
mesmo erro de ler o que devia permanecer num esconso qualquer.
Boas férias a
todos e bom (des) Câncio.
A autora escreve
de acordo com a antiga ortografia.
OPINIÃO
O estranho caso do historiador sem história
Pacheco Pereira irritou-se muito por no Twitter lhe
lembrarem que foi contra a amnistia de Otelo e o disse "sem caráter".
Vai daí, publicou um texto furibundo contra o Twitter. É normal: nas TV onde
perora ninguém costuma confrontar este historiador com um certo passado - o
seu.
Fernanda Câncio
03 Agosto 2021 —
00:11
https://www.dn.pt/opiniao/o-estranho-caso-do-historiador-sem-historia-14001052.html
Não há qualquer
dúvida - eu não tenho - de que Pacheco Pereira é um dos mais interessantes
comentadores portugueses. Inteligente, cáustico, lido, muitas vezes o que
escreve demonstra capacidade de análise que vai para além da superfície e nos
suscita reflexão, sendo até possível achar (já achei) um certo encanto no tom
de enfado, quase neurasténico, com que se apresta a explicar o mundo aos menos
afortunados no campo cerebral - nós todos, naturalmente.
O que escreve
deve porém ser lido com precaução: é bem possível que tenha já defendido o
absoluto contrário, com o mesmíssimo tom de impaciente superioridade. E sem
jamais explicar a, digamos, evolução. Porque, claro, mudar de opinião é normal
e até desejável em determinados assuntos, mas convém explicar porquê - sob pena
de se poder concluir que tais mudanças são fruto de estratégias e oportunismos
(ser conveniente num determinado contexto ter outros aliados e alvos, tendo
mudado de inimigo) e não de uma reflexão honesta, fruto de amadurecimento e/ou
alterações de circunstâncias.
Vejamos o caso de
Otelo. Pacheco Pereira, numa intervenção televisiva e num texto na Sábado, alertou
para a "tribalização" que a sua morte iria suscitar ("Nos dias
que atravessamos, de reducionismo da política à arregimentação tribal, Otelo
terá o panegírico do herói e o vilipêndio do criminoso, e não vai haver
capacidade para olhar para ele com distanciação"); na Circulatura do
Quadrado, comparou Spínola e o estratega do 25 de Abril, vincando que o
primeiro (também dirigente de um movimento terrorista, o MDLP, e ligado a uma
tentativa de golpe de Estado que o levou a fugir do país) tivera direito a luto
nacional e o segundo não. Não o vi defender preto no branco que Otelo, cujo
papel de dirigente das FP25 reconhece, deveria ter essa honra, mas a ideia que
fica é essa - as suas palavras "com Spínola não haveria 25 de Abril, sem
Otelo não haveria 25 de Abril" foram amplamente citadas por quem o
preconizou.
Nada de
problemático haveria nisso - podemos concordar ou discordar; podemos por
exemplo achar que Spínola não deveria ter tido essa honra apesar de ter sido PR
e que ter-se errado no seu caso não justifica repetir o erro (é o que penso) -
se o mesmíssimo Pacheco Pereira não se tivesse oposto à amnistia aprovada pelo
parlamento em 1996 (curiosamente, no ano da morte de Spínola) de que Otelo,
condenado pelo Supremo, em decisão nunca transitada em julgado, a 17 anos de
prisão por terrorismo dos quais cumpriu cinco em preventiva, foi beneficiário.
Vale a pena
revisitar a intervenção de Pacheco Pereira como deputado na discussão da
amnistia. Nesta, vincava que a proposta dividia "profundamente os
portugueses" e não tinha "qualquer papel de pacificação da sociedade
portuguesa"; que justificá-la com a "dualidade
fascismo/antifascismo" era "legitimar a atuação das FP-25 de
Abril", porque correspondia a "interpretá-la como um ato que pode ser
hoje, em 1996, visto como politicamente legítimo, como um ato que pode ser
inserido num comportamento antifascista e que, pelo reverso, pode ser comparado
ao comportamento da PIDE." A Otelo, elegia-o entre os responsáveis das FP
como o mais imperdoável: "Há, pelo menos, uma pessoa que não merece a
amnistia. Essa pessoa é a que, depois do que aconteceu, dando uma entrevista ao
semanário Expresso e falando da morte de uma criança [o bebé de quatro meses
morto em 1984 por uma bomba enquanto dormia no berço], disse que se tratava de
um erro técnico! E este cinismo, este sim, não pode ser amnistiado!"
Cinco anos
depois, em 2001, aquando do chamado "julgamento dos crimes de sangue"
das FP25, no qual Otelo era mais uma vez arguido e no qual foi, como previsível
no pós-amnistia, absolvido, o nosso político/comentador/historiador voltava à
carga num brutal artigo no Público, intitulado A bofetada, verberando a
"injustiça praticada pela justiça e pelo poder político no caso das FP-25
de Abril", cuja ação definiu como "puro terrorismo político, crimes
contra tudo o que são os fundamentos da democracia e dos direitos
humanos".
O "ar
impante de Otelo e dos seus companheiros, os abraços esfuziantes à saída do
tribunal, são uma bofetada para a esmagadora maioria dos portugueses",
afiançava, redobrando a sua fúria contra "o sorriso de Otelo (...), na
'aisance' criminosa dos que não se arrependeram, mas que fazem hoje a sua
vidinha de antigos combatentes, como se nada fosse (...), sem uma palavra de
distância, sem entregarem uma arma ou explosivo, sem pagarem um tostão às
vítimas, prontos para o 'talk show', com esta arrogância que nos fere a
todos". Para concluir: "Também aqui os homens de caráter perderam e
os que não o têm ganharam."
É possível, aos
52 anos, Pacheco Pereira achar isto tudo de Otelo - que não tinha caráter, que
era um criminoso impenitente e desalmado, que a sua amnistia e absolvição não
deviam ter acontecido, ou seja, que deveria ter passado 20 ou mais anos na
prisão, que o resultado dos dois processos das FP25 era uma
"violência" introduzida no "tecido psicológico coletivo",
um "rio de ressentimento" que havia de "vir ao de cima" - e
aos 72 pedir "distanciação" e até dar a entender que ele devia ser
celebrado como grande da pátria?
É possível,
porque aconteceu. Convinha era assumir. Justificar o facto de, quando teve o
poder de decidir com o seu voto, ter votado Otelo ao opróbrio. Ou admitir que
"estava enganado", "enraivecido", "era a posição do
meu partido/tribo", "foi a minha fase caceteira", "via o
mundo a preto e branco", "era parvo" - qualquer coisa assim.
O que não faz
sentido é arrogar-se a postura do filósofo historiador que sopesa contextos e
despreza aquilo a que chama "tribos", atribuindo aos outros aquilo que
ele próprio fez, e de forma muitíssimo violenta - apor o "vilipêndio do
criminoso" a Otelo. O que é patético, evidenciando um determinado tipo de
caráter, é reagir, perante quem confronta o recoletor da Ephemera com recortes
da sua história, como se o caluniassem.
Furibundo com o
facto de no Twitter - ao contrário do que se passou no universo das TV, no qual
comentou a morte de Otelo sem ninguém lhe ter feito uma perguntinha que fosse
sobre o seu historial no que a Otelo respeita (não sabiam ou, como ele, acham
que isso agora não interessa nada?) - se ter recordado o seu passado, o
historiador não teve a humildade de se colocar na história como peão que cada
um de nós é, examinar-se como produto do seu tempo e contexto, fazer errata do
seu percurso. Entrou, ele que foi dos primeiros a entusiasmar-se com os blogues
e o mundo da internet, na imprecação contra "as redes", queixando-se
de "ódios pessoais e políticos", "ajustes de contas" e
"disseminações de calúnias" - isto sem nada concretizar, que apresentar
factos só se exige aos outros e dizer o que tanto o irritou não dava jeito
nenhum.
Num texto
ironicamente intitulado A máquina do preto e branco, Pacheco, que um dia, há
muitos muitos anos, quando eu ainda o cria pessoa séria e lhe dirigia a
palavra, me disse "eu leio tudo", retrata-se na demonstração de que
passeia clandestino nesse universo que relata tanto desprezar, anotando elogios
e críticas e acalentando os ódios pessoais - baixinhos, baixinhos - que imputa
aos outros. O "monocolorismo" que descreve ser o Twitter serve-lhe
afinal para descrever o Twitter - como se o Twitter, como o mundo, porque como
o mundo, os jornais, as TV, os blogues, é feito de pessoas, não tivesse de
tudo.
"Olhem para
mim e vejam como estou indignado", é o resumo do Twitter por Pacheco
Pereira num texto que se resume a isso mesmo: a sua indignação por haver - como
se atrevem, como me atrevo? - quem lhe denuncie o bluff.
Jornalista
NOTA: texto
alterado às 19.41 de 3 de agosto, para colocar o título correto do texto de opinião
de Pacheco Pereira: A máquina do preto e branco em vez de, como estava escrito,
O mundo a preto e branco.
OPINIÃO
A máquina do preto e branco
Pobre mundo em que vive esta gente viciada nas redes,
mundo triste e solitário, enclausurado em boiões de vinagre e uma gigantesca
insegurança na covardia do anonimato ou no conforto da tribo.
José Pacheco
Pereira
31 de Julho de
2021, 0:10
https://www.publico.pt/2021/07/31/opiniao/opiniao/maquina-preto-branco-1972538
Um dos factores
do empobrecimento do debate público, trazido pelas chamadas “redes sociais”,
mas não só, é o funcionamento em pleno da máquina a preto e branco. Para o
debate político e cívico, só há duas componentes que ganham em ser colocadas a
preto e branco: uma é do domínio ético, é justo ou injusto; e outra do domínio
factual, é verdade ou mentira. E mesmo nestes casos há muita coisa em cinzento
que torna estas excepções difíceis de usar e fácil abusar delas. Fora disso,
fora das fotografias artísticas, o preto e branco é tóxico e faz mal à cabeça.
Cuidem-se para não se deixarem formatar.
As coisas têm
cor, as que se vêem e as que não se vêem, mas hoje, se não forem a preto e
branco, não circulam no ambiente tribal das políticas dos nossos dias. A
redução da complexidade, das nuances, das diferenças de tempo e circunstância a
duas simples caixas, preto e branco, esquerda e direita, nossos e deles, e as
múltiplas variantes deste dualismo contraditório exercem um feito perverso de
empobrecimento de qualquer discussão que começa e acaba com uma classificação
ou um epíteto. Ou é preto, ou é branco. Ou é dos nossos, ou é contra nós. Este
estilo está a migrar para toda a comunicação social, para a imprensa
sensacionalista (com uma vergonhosa capa do Tal e Qual) e, em particular, para
as televisões, com toda uma indústria da indignação a funcionar em pleno, em
particular se os gritos vierem de figuras que se apresentam de forma
folclórica, sem desprimor para o Volk. Olhem para mim e vejam como estou
indignado/a. Este estilo estava já no futebol, passa para tudo o resto. Está
bem para os tempos, porque gera audiências. E mete medo aos medrosos, porque a
intimidação e vingança têm aqui um papel importante.
O preto e branco
é simples, é preguiçoso, é redutor, é cómodo, não implica qualquer saber ou
trabalho, e é eficaz para arregimentar pessoas para a política tribal. As
longas fiadas de tweets pouco mais são do que verificações de presença e
identidade, no qual o autor do tweet entra na cadeia alimentar para se sentir
seguro e acompanhado e vilipendiar o adversário em cenas de matilha. Nada é
verificado, frases, factos, opiniões, nada é datado, nada tem o contexto das
circunstâncias, como se tudo fosse na mesma e os tempos fossem iguais, e como
tudo é repetido ad nauseam transforma-se não digo em verdade, mas em
imprecações úteis para o fim em vista. Ajustar contas, garantir o território,
disseminar a calúnia e voltar para casa muito contente e feliz pelo serviço
prestado ao ego próprio e às suas causas. Pobre mundo em que vive esta gente
viciada nas redes, mundo triste e solitário, enclausurado em boiões de vinagre
e uma gigantesca insegurança na covardia do anonimato ou no conforto da tribo.
Os ódios pessoais
e políticos são o grande motor de um universo que não é assim muito grande –
são poucas dezenas de pessoas, quando se trata de política, que vivem todas em
cima umas das outras. A dimensão deste universo é importante lembrar, porque
não estamos a falar das multidões mobilizadas pelo divórcio da Pipoca Mais
Doce, ou do “assumir/desassumir” do nosso pobre jet-set, mas matérias em que a
militância nas redes sociais é muito endogâmica, e todos se conhecem uns aos
outros, mesmo quando usam pseudónimos para parecerem muitos e fazerem número. O
mecanismo de intervenção é estereotipado, e inclui muita raiva e ressentimento.
Quando vêem um putativo adversário ser elogiado, é só contar os segundos até
que aparecem para contrariar; quando vêem um dos da tribo a ser atacado, lá vêm
defendê-lo com unhas e dentes. Há vários especialistas nestas matérias,
demasiado conhecidos, que vivem nas redes sociais da política, uma jornalista
que tirava férias à custa de um primeiro-ministro, um gestor que andou nos
elogios ao poder do Governo Passos-Portas-troika, uns jovens puristas do
comunismo do PCP, um procurador nortenho que admira Salazar, todos estão sempre
lá vigilantes e atentos. E há alguns mais, não muitos.
O espectáculo dos últimos dias com a morte de Otelo é um
bom exemplo de como isto está. Tudo o que aqui escrevo aconteceu e acontece,
para nossa vergonha colectiva
O espectáculo dos
últimos dias com a morte de Otelo é um bom exemplo de como isto está. Tudo o
que escrevi antes aconteceu e acontece, para nossa vergonha colectiva. Ou se é
a favor, branco, ou contra, preto. E se é branco em 1974, preto em 1975, mais
preto ainda quando das FP-25, não se pode ser branco em 2021. Se mantivéssemos
as cores todas, não havia necessidade deste “monocolorismo”, e talvez
compreendêssemos melhor o homem, o seu valor e os seus desvalores. E como o
fenómeno é o 25 de Abril e o epifenómeno são as FP-25, no balanço da história
em que vivemos, hoje em 2021, não há comparação entre o que lhe devemos e o que
lhe condenamos. Mas pensar assim não serve para as tribos, pois não?
Esta coluna
interrompe-se em Agosto. Regressa a 4 de Setembro



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