REPORTAGEM LISBOA
Fazem-se as malas no Pátio Martins: “A gente sempre
desejou uma casinha melhor”
O Martins é um dos últimos pátios habitados nas traseiras
de Campolide. Há um plano urbanístico para a zona e os moradores têm de sair.
Uns querem regressar, outros nem por isso.
João Pedro Pincha
(Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia)
25 de Abril de
2021, 6:53
O passarinho de
Maria José anda de namoro pegado com a canária dos vizinhos. Tem-se divertido a
pensar nos possíveis frutos desse estranho relacionamento. “Quando nascerem os
canarinhos é que tu abres a garrafa de champanhe”, diz ela a Octávio,
bem-disposta. Com estas graças vai adiando lembrar-se de que em breve terá de
confiar o seu cão ao cuidado de outros, uma vez que ela já tem guia de marcha.
Aos 80 anos,
Maria José Martins Marques prepara-se para conhecer a segunda casa da sua vida.
Aquela em que habitou até agora vai ser demolida. “A minha mãe veio para aqui
ainda eu não era nascida. E diziam-lhe: ‘Ah, vai para lá morar? Olhe que aquilo
vai tudo abaixo.’”
O grande cão
saltita até onde a trela permite e ladra até se cansar. Tentam dar-lhe festas
para o acalmar, mas a excitação de ver caras novas sobrepõe-se. Maria José não
vai levá-lo para o apartamento que a Câmara de Lisboa lhe concedeu no
realojamento. Podia fazê-lo, mas o bicho está habituado ao ar livre, ao
permanente convívio com os vizinhos, a estar literalmente no centro das
atenções.
O sol está a
pôr-se e vem bater em cheio no Pátio Martins, um pequeno aglomerado de casas
escondido atrás da Rua de Campolide. Na parte de cima, junto à porta de Ana
Paula e Domingas, vê-se Monsanto, o bairro da Serafina, o Eixo Norte/Sul e a
linha de comboio. Os aviões, quando os há, passam mesmo ali por cima. Para
disfarçar a barulheira vai valendo a cantoria persistente do pássaro de Nuno
Trindade.
Na sua casa os
tectos estão negros e as paredes não seguram tinta. “Não vale a pena investir
dinheiro nisto, no ano seguinte tem de se fazer outra vez”, conta. “Chove-me
dentro de casa, pelas paredes. A canalização está toda partida.” Receia pela
saúde dos filhos com tanta humidade. Além disso, a habitação de apenas dois
quartos é pequena para as oito pessoas que ali moram.
No Pátio Martins
habitam 25 pessoas. A propriedade é privada, mas a câmara decidiu realojá-las
em casas municipais porque o aglomerado está paredes meias com o devoluto Pátio
Gonçalves, quase todo propriedade da autarquia, que será demolido e reconstruído.
De caminho, porque não era possível mexer no Gonçalves sem perturbar o Martins,
também este virá abaixo. Aqui, paredes meias significa isso mesmo.
Por ora, o
município ainda está em negociações com o proprietário para adquirir o Pátio
Martins. Recentemente foi aprovada uma Área de Reabilitação Urbana para a Rua
de Campolide e em breve entrará em vigor uma Operação de Reabilitação Urbana
Sistemática, que é uma ferramenta que dará à câmara a possibilidade de fazer
expropriações, se necessário for.
“Ah, queres casa?
Então é tua”
Alheios (mas não
indiferentes) a este processo burocrático, os habitantes despedem-se das casas
– com as quais estabeleceram uma relação de amor-ódio.
“O meu quarto
está forrado com colchas porque cai a tinta da parede. A minha casa de banho
não tem tecto. Gostava de ter uma cozinha maior. A sala não dá para ter um
sofá”, enumera Natália, ao lado do companheiro Octávio, que foi quem a
convenceu a vir morar para aqui. Nascida em Cabinda quando Angola ainda era
colónia portuguesa, pisou Trás-os-Montes aos 18 anos e o choque com aquela
realidade foi tanto que veio a correr para Lisboa. Viveu quase sempre em
Campolide. Depois conheceu Octávio, que já morava no Pátio Martins, e mudou-se.
Apresenta a lista de queixas sobre a casa com o mesmo à-vontade com que diz bem
da vizinhança: “Aqui está sempre tudo em família.”
É uma frase
recorrente por estas bandas. Maria José Marques, actualmente a moradora mais
antiga, a quem os outros alcunharam “a chaveira do céu”, entrega-se à
nostalgia. “A fogueira era aqui sempre neste sítio. Uma vez a minha mãe saltou
a fogueira e partiu a cabeça”, recorda. O bom relacionamento com (quase) todos
os companheiros de pátio não a faz esquecer agruras passadas e penas presentes.
“A casa estava toda a cair. O meu pai que Deus tem saía do trabalho e vinha
para aqui fazer obras. A gente sempre desejou ter uma casinha melhor. Tenho
pena de sair, mas vou para o pé do meu filho, para o pé dos meus netos.”
Ana Paula, pelo
contrário, está mais relutante. A 27 de Março cumpriram-se 30 anos desde que se
mudou para o pátio com o marido, Isidro, e aqui nasceram os seus três filhos.
“Uma pessoa está aqui muito habituada a ter as portas abertas”, diz. “Nós
basicamente dividimos as coisas, é como uma família. No Verão montamos uma
piscina, um fogareiro, vivemos cá fora. Agora isso vai-se acabar tudo, não
vamos ficar uns ao pé dos outros. Se quer que lhe diga, é muito complicado sair
daqui.”
A ouvi-la está
Paula Marques, a vereadora da Habitação. “O nosso compromisso é de que as
pessoas podem voltar. O projecto em que estamos a trabalhar é o de manter a
tipologia de pátio”, diz-lhe. Resposta pronta de Ana Paula: “Quero! Sim, sim,
sem sombra de dúvidas. Campolide é Campolide.”
Quando aqui
chegou, uma semana depois da vizinha Domingas, Ana Paula fez como toda a gente:
foi pedir ao senhorio uma habitação. “Ah queres casa? Aquela está ocupada? Não?
Então pronto, é tua. São 150 escudos de renda. Obras é que cá não há!”
A promessa
cumpriu-se. Benfeitorias e ampliações têm sido responsabilidade dos inquilinos.
É por isso que André Marques, filho de Domingas, está ansioso por ver o pátio
pelas costas. Não romantiza os 27 anos que ali viveu. Quando era adolescente
tinha vergonha de levar os amigos a sua casa. Hoje, se quiser lá levar uma
namorada, toda a vizinhança fica a saber. “Para mim é um alívio, um grande
alívio. A casa tem muita humidade, a minha mãe tem de a pintar de ano a ano.”
Nuno Trindade,
que em miúdo não morava longe e vinha jogar à bola com as crianças do pátio,
não disfarça a indignação com as condições em que sempre viveu e queixa-se de
ninguém lhes ter dado atenção. André Couto, o presidente da junta, e uma eleita
do BE na assembleia de freguesia, Carmo Bica, são os nomes que surgem na
conversa como exemplo dos que se interessaram.
“Gosto e sempre
gostei de morar aqui. Eu vou sentir saudades disto, isso vou”, diz Nuno. “Foi
onde eu ri, onde eu chorei”, começa, e percebe-se que a mente divaga para as
recordações. Enquanto isso, Ana Paula revela o sonho de voltar a entrar na
marcha de Campolide, como na sua juventude, desta vez com um filho ao lado.
Cada um cogita consigo mesmo. A porta do pátio fecha-se com o cair da noite.

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