domingo, 25 de abril de 2021

Fazem-se as malas no Pátio Martins: “A gente sempre desejou uma casinha melhor”

 


REPORTAGEM LISBOA

Fazem-se as malas no Pátio Martins: “A gente sempre desejou uma casinha melhor”

 

O Martins é um dos últimos pátios habitados nas traseiras de Campolide. Há um plano urbanístico para a zona e os moradores têm de sair. Uns querem regressar, outros nem por isso.

 

João Pedro Pincha (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia)

25 de Abril de 2021, 6:53

https://www.publico.pt/2021/04/25/local/reportagem/fazemse-malas-patio-martins-gente-desejou-casinha-melhor-1959751

 

O passarinho de Maria José anda de namoro pegado com a canária dos vizinhos. Tem-se divertido a pensar nos possíveis frutos desse estranho relacionamento. “Quando nascerem os canarinhos é que tu abres a garrafa de champanhe”, diz ela a Octávio, bem-disposta. Com estas graças vai adiando lembrar-se de que em breve terá de confiar o seu cão ao cuidado de outros, uma vez que ela já tem guia de marcha.

 

Aos 80 anos, Maria José Martins Marques prepara-se para conhecer a segunda casa da sua vida. Aquela em que habitou até agora vai ser demolida. “A minha mãe veio para aqui ainda eu não era nascida. E diziam-lhe: ‘Ah, vai para lá morar? Olhe que aquilo vai tudo abaixo.’”

 

O grande cão saltita até onde a trela permite e ladra até se cansar. Tentam dar-lhe festas para o acalmar, mas a excitação de ver caras novas sobrepõe-se. Maria José não vai levá-lo para o apartamento que a Câmara de Lisboa lhe concedeu no realojamento. Podia fazê-lo, mas o bicho está habituado ao ar livre, ao permanente convívio com os vizinhos, a estar literalmente no centro das atenções.

 

 

O sol está a pôr-se e vem bater em cheio no Pátio Martins, um pequeno aglomerado de casas escondido atrás da Rua de Campolide. Na parte de cima, junto à porta de Ana Paula e Domingas, vê-se Monsanto, o bairro da Serafina, o Eixo Norte/Sul e a linha de comboio. Os aviões, quando os há, passam mesmo ali por cima. Para disfarçar a barulheira vai valendo a cantoria persistente do pássaro de Nuno Trindade.

 

Na sua casa os tectos estão negros e as paredes não seguram tinta. “Não vale a pena investir dinheiro nisto, no ano seguinte tem de se fazer outra vez”, conta. “Chove-me dentro de casa, pelas paredes. A canalização está toda partida.” Receia pela saúde dos filhos com tanta humidade. Além disso, a habitação de apenas dois quartos é pequena para as oito pessoas que ali moram.

 

No Pátio Martins habitam 25 pessoas. A propriedade é privada, mas a câmara decidiu realojá-las em casas municipais porque o aglomerado está paredes meias com o devoluto Pátio Gonçalves, quase todo propriedade da autarquia, que será demolido e reconstruído. De caminho, porque não era possível mexer no Gonçalves sem perturbar o Martins, também este virá abaixo. Aqui, paredes meias significa isso mesmo.

 

Por ora, o município ainda está em negociações com o proprietário para adquirir o Pátio Martins. Recentemente foi aprovada uma Área de Reabilitação Urbana para a Rua de Campolide e em breve entrará em vigor uma Operação de Reabilitação Urbana Sistemática, que é uma ferramenta que dará à câmara a possibilidade de fazer expropriações, se necessário for.

 

“Ah, queres casa? Então é tua”

Alheios (mas não indiferentes) a este processo burocrático, os habitantes despedem-se das casas – com as quais estabeleceram uma relação de amor-ódio.

 

“O meu quarto está forrado com colchas porque cai a tinta da parede. A minha casa de banho não tem tecto. Gostava de ter uma cozinha maior. A sala não dá para ter um sofá”, enumera Natália, ao lado do companheiro Octávio, que foi quem a convenceu a vir morar para aqui. Nascida em Cabinda quando Angola ainda era colónia portuguesa, pisou Trás-os-Montes aos 18 anos e o choque com aquela realidade foi tanto que veio a correr para Lisboa. Viveu quase sempre em Campolide. Depois conheceu Octávio, que já morava no Pátio Martins, e mudou-se. Apresenta a lista de queixas sobre a casa com o mesmo à-vontade com que diz bem da vizinhança: “Aqui está sempre tudo em família.”

 

 

 

 

É uma frase recorrente por estas bandas. Maria José Marques, actualmente a moradora mais antiga, a quem os outros alcunharam “a chaveira do céu”, entrega-se à nostalgia. “A fogueira era aqui sempre neste sítio. Uma vez a minha mãe saltou a fogueira e partiu a cabeça”, recorda. O bom relacionamento com (quase) todos os companheiros de pátio não a faz esquecer agruras passadas e penas presentes. “A casa estava toda a cair. O meu pai que Deus tem saía do trabalho e vinha para aqui fazer obras. A gente sempre desejou ter uma casinha melhor. Tenho pena de sair, mas vou para o pé do meu filho, para o pé dos meus netos.”

 

Ana Paula, pelo contrário, está mais relutante. A 27 de Março cumpriram-se 30 anos desde que se mudou para o pátio com o marido, Isidro, e aqui nasceram os seus três filhos. “Uma pessoa está aqui muito habituada a ter as portas abertas”, diz. “Nós basicamente dividimos as coisas, é como uma família. No Verão montamos uma piscina, um fogareiro, vivemos cá fora. Agora isso vai-se acabar tudo, não vamos ficar uns ao pé dos outros. Se quer que lhe diga, é muito complicado sair daqui.”

 

A ouvi-la está Paula Marques, a vereadora da Habitação. “O nosso compromisso é de que as pessoas podem voltar. O projecto em que estamos a trabalhar é o de manter a tipologia de pátio”, diz-lhe. Resposta pronta de Ana Paula: “Quero! Sim, sim, sem sombra de dúvidas. Campolide é Campolide.”

 

Quando aqui chegou, uma semana depois da vizinha Domingas, Ana Paula fez como toda a gente: foi pedir ao senhorio uma habitação. “Ah queres casa? Aquela está ocupada? Não? Então pronto, é tua. São 150 escudos de renda. Obras é que cá não há!”

 

A promessa cumpriu-se. Benfeitorias e ampliações têm sido responsabilidade dos inquilinos. É por isso que André Marques, filho de Domingas, está ansioso por ver o pátio pelas costas. Não romantiza os 27 anos que ali viveu. Quando era adolescente tinha vergonha de levar os amigos a sua casa. Hoje, se quiser lá levar uma namorada, toda a vizinhança fica a saber. “Para mim é um alívio, um grande alívio. A casa tem muita humidade, a minha mãe tem de a pintar de ano a ano.”

 

Nuno Trindade, que em miúdo não morava longe e vinha jogar à bola com as crianças do pátio, não disfarça a indignação com as condições em que sempre viveu e queixa-se de ninguém lhes ter dado atenção. André Couto, o presidente da junta, e uma eleita do BE na assembleia de freguesia, Carmo Bica, são os nomes que surgem na conversa como exemplo dos que se interessaram.

 

“Gosto e sempre gostei de morar aqui. Eu vou sentir saudades disto, isso vou”, diz Nuno. “Foi onde eu ri, onde eu chorei”, começa, e percebe-se que a mente divaga para as recordações. Enquanto isso, Ana Paula revela o sonho de voltar a entrar na marcha de Campolide, como na sua juventude, desta vez com um filho ao lado. Cada um cogita consigo mesmo. A porta do pátio fecha-se com o cair da noite.

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