OPINIÃO
Como escrever sobre um colega decapitado?
Para haver civilização, há que derrotar os fanáticos
todos uma e outra vez. Essa é a missão que Samuel Paty nos entregou. Saibamos
ser dignos dela.
RUI TAVARES
19 de Outubro de
2020, 0:05
https://www.publico.pt/2020/10/19/opiniao/opiniao/escrever-colega-decapitado-1935753
Esta crónica
poderia chamar-se #jesuisSamuelPaty. Como Samuel Paty, sou historiador, e já
dei aulas sobre a história da censura e liberdade de expressão nas quais não
poderia deixar de incluir as caricaturas de Maomé do jornal dinamarquês
Jyllands-Posten ou do francês Charlie Hebdo. Como Samuel Paty, expliquei aos
alunos que o papel da história não é fingir que as controvérsias não existiram,
nem deixá-los na ignorância sobre as razões delas.
Samuel Paty,
professor de História e Geografia num colégio na região Norte da Grande Paris,
disse até aos seus alunos que poderiam sair caso considerassem plausível que as
imagens das caricaturas de Maomé que ele iria mostrar os pudessem chocar.
Alguns alunos saíram, a maioria decidiu ficar. Uma aluna — que não é ainda
claro se decidiu ficar ou sair — comunicou aos seus pais o sucedido, e o seu
pai decidiu lançar um escândalo na sua página de Facebook, alegando falsamente
que o professor teria mostrado a fotografia de um homem nu e dito que se
tratava do profeta Maomé (na verdade, não foram mostradas fotos, mas apenas
caricaturas).
As coisas tomam
uma dimensão inesperada. Há queixas junto da direção da escola e da polícia,
reuniões entre a direção da escola e o professor, entre a direção da escola e
os pais, e finalmente uma ida do professor à esquadra de polícia para explicar
o que se tinha passado. Quanto ao pai da aluna, em vez de comparecer na polícia
em resposta a uma convocatória motivada pela queixa que ele próprio tinha
feito, decide antes fazer um novo vídeo para o YouTube, no qual expõe a sua
filha de 13 anos de novo a dizer que lhe tinham mostrado um homem nu e dito que
era Maomé. Para lá das mentiras e exageros, o pai da aluna divulga no seu vídeo
o nome da escola e do professor.
E assim chegamos
ao ato final: um homem de 18 anos que nada tinha a ver com o caso, que não era
aluno nem pai de aluno daquela escola, persegue Samuel Paty e assassina-o,
decapitando-o. Por isso, esta crónica não se poderia chamar #jesuisSamuelPaty a
não ser pelas razões do choque e a da solidariedade. Porque a verdade é que
Samuel Paty, professor de história de 47 anos, praticamente a minha idade, foi
decapitado — e eu estou vivo a escrever sobre ele.
Um caso como
estes pode deixar-nos sem saber como reagir. Para lá do choque e da
solidariedade, que fazer?
Em primeiro
lugar, um pouco de pedagogia sobre a pedagogia. É preciso que governos,
políticos, pais, líderes religiosos — e jornais também; todos nós, na verdade —
se juntem para explicar que a escola não é um armazém onde os pais depositam as
crianças para que lhes seja dito apenas e só o que aos pais aprouver. Esse é,
se assim o quiserem, o papel da casa e da família; na escola, prepara-se gente
para a diversidade e a exigência da vida em sociedade, e dá-se-lhes acesso,
nuns poucos anos privilegiados das suas vidas, a uma parte daquele acervo de
conhecimentos e experiências que a humanidade levou milénios a construir. Nem
tudo tem de agradar; a escola é um ponto de encontro, no qual as opiniões
divergentes têm lugar, incluindo as de pais e professores. Nada mais comum, e
em certa medida nada de mais saudável. Mas se não tivesse havido a arrogante
irresponsabilidade daquele pai, que optou por escandalizar-se e escandalizar os
outros espalhando mentiras e exageros pelas redes sociais, não teria
provavelmente havido um assassino fanatizado para matar Samuel Paty. Há aqui
uma responsabilidade para pais, professores e também para as redes sociais — e
para políticos: as leis provavelmente precisam de ser alteradas, e espalhar
notícias falsas que ponham em risco terceiros deve ser crime, agravado em casos
como estes de profissionais que não imaginariam estar em perigo de vida por
simplesmente fazerem o que à sua profissão compete.
Vale a pena fazer
também um pouco de história sobre a história. Os historiadores nunca foram, nem
nunca serão, seres anódinos e apartidários. Não se consegue ser historiador —
muito menos um bom historiador — sem se ter ideias próprias. Os historiadores
têm regras da arte e uma deontologia que lhes deve ser comum, mas não se pode
exigir aos historiadores que não digam nada que não possa chocar.
E desenganem-se
os que pensam que as ameaças vêm só de fanáticos religiosos, muçulmanos ou não;
a classicista britânica Mary Beard recebeu ameaças de morte de racistas por ter
mencionado o facto bem sabido de que havia negros na província britânica do
Império Romano; historiadores um pouco por todo o mundo sofrem ameaças de
“nacionalistas” que os acusam de conspurcar a história pátria por não ocultarem
os pedaços maus dela; outros sofrem pressões por não se revelarem
suficientemente chocados com os preconceitos do passado, e por aí adiante. E
nada disto, vindo de onde quer que seja, é aceitável.
Defender o
direito da história a não se calar perante os fanáticos é defender a própria
civilização. O fanatismo é o inimigo da civilização. Para haver civilização, há
que derrotar os fanáticos todos uma e outra vez. Essa é a missão que o nosso
colega decapitado, sem poder imaginar o que lhe iria acontecer, nos entregou. Saibamos
ser dignos dela.


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