Mundo,
temos um problema
09.11.2016 às 7h450
O
sistema está tão podre, tão descontrolado e tão incapaz de se
reformar que a vontade do povo americano de mudá-lo musculou o braço
de quem prometeu esmurrá-lo. Não é uma derrota política, é uma
derrota da política. A análise de Pedro Santos Guerreiro, diretor
do Expresso.
Custa escrever esta
frase: a vitória de Trump. Não porque seja a derrota dos democratas
e não porque seja a derrota da democracia – a sua vitória
demonstra, paradoxalmente, a força da democracia. Mas porque uma
superpotência elegeu um superpotente perigoso, instável, xenófobo
e com vontade de mudar tudo, inclusive mudar a vontade de mudar tudo.
Com a Casa Branca, o
Senado e o Congresso, Trump pode fazer quase o que quiser, mas a sua
retórica é tão perturbadora e despreza tanto a verdade que
prenuncia mais do que anuncia, não sabemos bem sequer o que quer e o
que fará. Na Carta de Independência dos Estados Unidos, há
verdades que deixaram de ser auto-evidentes.
Hillary Clinton não
é nem nunca foi santa, era aliás padroeira de um sistema corrompido
de que sempre fez parte e que com ela prevaleceria. A política
americana transformou-se numa legitimação da perfídia, da perfídia
partidária em Washington, da perfídia sobre a população
manipulada em nome de ideais fundadores. Obama é um homem genial mas
não foi um Presidente genial, prometeu uma mudança que não
conseguiu impor. Não pode, aliás: não dispôs do poder que Trump
agora tem.
Chamemos-lhe “o
sistema”. O sistema está tão podre, tão descontrolado e tão
incapaz de se reformar que a vontade do povo americano de mudá-lo
musculou o braço de quem prometeu esmurrá-lo. O que não foi a bem
há de ir a mal. Mas ir para onde? Sabemos que barreira foi hoje
derrubada, não sabemos que barreira sobre ela será agora erguida.
Ganhou a intolerância.
Ganhou a
intolerância ao sistema. Ao sistema político capturado pelo sistema
económico capturada pelo sistema financeiro. Ao sistema que prospera
agravando a desigualdade, aumentando a dívida e subjugando classes
sociais. Ao sistema controlado por instituições nomeadas que falham
aos representados e por políticos eleitos que prometem o que não
cumprem. Trump não controla apenas a Casa Branca, o Partido
Republicano controla também o Senado e o Congresso, é um mapa-mundo
de poder.
É demasiado poder
para quem desdenha as instituições e se apresenta autoritário e
disposto a desrespeitar quem o contesta. Trump admite até mudar a
Constituição, para por exemplo dar o mesmo poder do Presidente ao
vice-presidente. Podia até ser uma boa notícia. Não é: Mike Pence
é pior que Trump porque pensa como ele e não é bronco como ele.
Ganhou a
intolerância à imigração e à diferença de credos religiosos.
Trump é um xenófobo verdadeiro com um discurso mentiroso. A
campanha acabou, a fratura não. Quem vai pagar a fratura? Os
imigrantes para começar. Se cumprir o que foi dizendo (e muitas
vezes desdizendo), os clandestinos serão expulsos, aqueles que
tenham cadastro criminal serão deportados, muros físicos serão
erguidos nas fronteiras com o México, o combate ao terrorismo será
violento, os muçulmanos serão listados em bases de dados. Deixar de
fora não é apenas excluir, é dividir. É provocar. É partir.
O sistema de valores
que consagrámos no mundo ocidental, onde o Reino Unido votou para
sair da União Europeia há poucos meses, está a ser tomado por uma
“direita dura” – e esta é uma definição mole. Ela vence ou
cresce para poder vencer em países como a Hungria, como a Finlândia,
como a França. Putin há de estar radiante. E nós, mundo, temos um
problema.
(Artigo publicado
quando a vitória de Trump não é ainda oficial, mas já dada como
certa)

Sem comentários:
Enviar um comentário