Contexto e causa de um assassínio
O assassínio de Nemtsov torna
claro que a guerra da Ucrânia se tornou num problema interno da Rússia
Jorge Almeida
Fernandes 4/3/2015 PÚBLICO
Uma bala é um
vulgar e tradicional instrumento da política russa, escreve o analista Gleb
Kuznetsov no Moscow Times. “O assassínio político faz parte da prática política
corrente.” É inútil evocar a História russa ou as práticas funestas da era de
Vladimir Putin. Apesar da banalidade do crime, a morte de Boris Nemtsov teve
larga repercussão e pode servir como um sinal para a Europa.
Não é razoável
imaginar o Presidente a dar a “ordem de matar” a um gang ou às suas polícias. A
série de crimes políticos na Rússia faz lembrar a “Mão Negra” sérvia do
princípio do século passado. Ao Presidente basta criar uma atmosfera de
paranóia e de histeria nacionalista acicatada pela televisão: foi este o
contexto e a causa do crime. O certo é que é perigoso ser adversário de Putin.
É significativo
que imediatamente tenham circulado milhares de tweets a acusar a América de ter
encomendado o assassínio — mais um complot ocidental para dilacerar a Rússia e
manchar a imagem do seu Presidente. É também a pista indicada por “politólogos”
próximos do Kremlin.
Grigori
Iavlinski, fundador do partido de oposição Iabloko, associa o atentado contra
Nemtsov à guerra na Ucrânia, que ele insistentemente denunciava, e às suas
repercussões dentro da Rússia. “O assassínio de Boris Nemtsov, que chocou a
Rússia, é o resultado de uma guerra que decorre desde há um ano. O espaço dessa
guerra é muito mais vasto do que a área das operações militares no Leste da
Ucrânia. Cobre o conjunto da Rússia e a antiga URSS.” Conclui: “A tragédia do
assassínio de Nemtsov torna claro que a guerra não é só uma questão de política
externa — é um problema interno maior da Rússia e que está a desfigurar a
sociedade.”
Natalia Antonova,
jornalista e escritora russa, pensa que o crime galvanizará a oposição mas
pouco mudará, pelo menos a curto prazo. “Não vai pôr termo à caça às bruxas na
televisão. Não fará repensar os objectivos russos no Leste da Ucrânia. (...)
Mas a verdade é que o génio pode estar a escapar da garrafa. A constante
campanha de ódio — na televisão, na Internet e nas ruas — cria uma atmosfera
propícia à atrocidade.”
A Rússia é
Europa?
Nemtsov
representava tudo o que Putin e os seus ideólogos odeiam, anota o analista
francês Daniel Vernet: “Uma orientação pró-ocidental, a defesa do Estado de
Direito e do respeito das liberdades individuais, a crítica da guerra na
Tchetchénia já no tempo de Ieltsin e a denúncia da guerra na Ucrânia.”
Quais são os
desígnios europeus de Putin e dos nacionalistas e euro-asiatistas russos? Deixemos
de lado o recorrente debate russo desde que, no século XVIII, Pedro I rompeu a
tradição e “abriu as janelas para a Europa”. O filósofo francês Michel
Eltchaninoff, estudioso do pensamento russo, publicou recentemente um livro —
Dans la tête de Vladimir Poutine (Na cabeça de Vladimir Putin) — em que tenta
decifrar o pensamento do Presidente russo. Fala na combinação entre a ideia
“sovietista” (não comunista, mas militarista e imperial); a exaltação da “via
russa”, segundo a qual a “Rússia deve seguir o seu próprio caminho e combater o
Ocidente que a quer impedir de o fazer”; e finalmente o euro-asiatismo que se
exprime no projecto de uma União Euro-Asiática rival da União Europeia. A este
patchwork ideológico junta-se a “mentalidade KGB” e uma concepção autoritária
do poder.
Estes elementos
foram-se afirmando desde o seu acesso à presidência em 2000. Mas algo se
radicalizou nos últimos anos. Explica numa entrevista o escritor russo Viktor
Erofeiev: “Após o seu regresso, para o terceiro mandato [2012], ele assumiu
como objectivo criar um contrapeso perante a Europa. Há uma certa analogia com
o império russo. Putin não se vê como agressor. Sente-se traído pelo Ocidente.
Quando começou a desenvolver a ideia de império, compreendeu que o império não
pode existir sem a Ucrânia.”
A Rússia de Putin
é Europa? Responde Erofeiev: “Globalmente, penso que a Rússia não é um país
europeu, que a sua política actual não é europeia, direi mesmo que a sua
política se funda no conflito com a Europa. (...) É um país entre o Oeste e o
Leste. Nos seus melhores momentos, a Rússia une os valores do Oeste e do Leste.
Nos seus piores momentos, sentase entre duas cadeiras, o que dá a sensação de
que a alma russa é incompreensível. O segundo fenómeno é que o mundo sem
guerra, sem agressão e sem conflitos terminou. É um aspecto importante que os
ocidentais devem perceber.”
Com a abertura da
crise ucraniana em Dezembro de 2013, o Kremlin designou a União Europeia como o
seu inimigo directo. Os europeus não tiveram noção disso, não previram a
violenta reacção russa, não tiveram meios para responder.
Um oposicionista
russo reconhecia há dias que uma oposição digna desse nome desapareceu. Hoje
há, de novo, “dissidentes”. Putin apenas os teme por um motivo: o receio de um
surto de descontentamento popular. A Ucrânia é a mola da mobilização patriótica
e da sua sobrevivência política. Como explica Iavlinski, Nemtsov foi por isso
assassinado. Por quem? Não é o que mais interessa.

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