Salva e guarda da Tapada das Necessidades para Lisboa
Cristina
Castel-Branco
09 Maio 2021 —
08:49
Cristina Castel-Branco
Opinião
Em 1836 D.
Fernando veio da Alemanha residir no Palácio das Necessidades com sua mulher D.
Maria II e inicia um processo novo em Portugal, construindo e acompanhando a
obra do primeiro jardim paisagista em Lisboa. Esta novidade toma forma na antiga
Cerca das Necessidades, que havia sido deixada por D. João V aos padres
oratorianos que a tratavam como mata, pomar e horta.
As novidades
técnicas introduzidas por D. Fernando foram experimentadas neste terreno virado
sobre o Tejo, com excelente exposição, com acentuados declives e água trazida
pelo Aqueduto das Águas Livres. Os bons resultados das experiências nas
Necessidades eram depois desmultiplicados no Parque da Pena onde o rei lançava
o seu maior e mais belo projeto paisagista, reconhecido no século XX como
Património da Humanidade.
Através de uma
sábia modelação do terreno das Necessidades, de uma otimização da água
disponível e de melhorias substanciais da qualidade dos solos, os dez hectares
da Tapada das Necessidades passaram a terreno de aclimatação de espécies vindas
de todas as partes do mundo e de experiências como a primeira máquina de corte
de relva. O sucesso desta operação vem relatado nos diários de visitantes como
Hans Christian Andersen: "O rei D. Fernando (...), gentil e acolhedor,
falou das minhas obras (...). Ele próprio me conduziu aos seus magníficos
jardins onde trepadeiras raras cobriam com grande profusão de folhas e flores
os muros altos e onde esplêndidas palmeiras de grandes copas estendiam a sua
sombra. Tudo era de uma grande beleza (...) com os cuidados e o bom gosto do
rei." (1)
Uma imagem na
sala particular da rainha, no Palácio das Necessidades, encontrada e descrita
por João A. Carreiras, revela-nos o jardim do rei: "O aspeto original
deste jardim está bem patente numa pintura na qual se vê o lago com a ilha,
onde está um pequeno pavilhão. O lago está envolto por vegetação luxuriante
(...). Ao fundo vislumbra-se a escadaria que conduz ao jardim de buxo e que
permitiu identificar com segurança o local aqui representado." (2) O
ambiente romântico da pintura e as formas ondulantes do lago constituem uma
grande inovação na história de arte de jardins e uma nova forma de relação com
a natureza que se opõe à geometria linear do jardim do século XVIII.
Foi tão inovador este
traçado que muitos artigos sobre a Tapada das Necessidades surgiram nas
revistas das sociedades hortícolas criadas também em simultâneo com todo este
entusiasmo pelo mundo das plantas e pelos jardins e parque que se verificou no
século XIX por toda a Europa e que está ainda (!) patente e possível de
recuperar nas Necessidades.
O
jardineiro-chefe que pôs em prática as ideias do príncipe consorte D. Fernando
II, aclimatando milhares de espécies a esta encosta sul de Lisboa, chamava-se
Jean-Baptiste Bonnard (3), o mesmo que em 1856 veio a traçar o projeto
(oferecido pelo rei à cidade de Lisboa ) para o Jardim da Estrela segundo este
novo estilo paisagista que nas Necessidades revolucionou o desenho dos jardins
de Lisboa introduzindo o estilo do jardin paysager, e compondo o espaço com
novas plantas, formas naturalizadas e objetivos de uso público à imagem do que
se fazia na Europa e nos EUA.
É pois
desconcertante assistir hoje à indiferença da Câmara de Lisboa em relação ao
que foi o jardim seminal de todo este processo de entrega ao público do
privilégio de ter um jardim na cidade. A importância histórica deste jardim é
enorme e basta deslocarmo-nos à Exposição de Jardins Históricos promovida pela
própria Câmara Municipal de Lisboa em celebração de Lisboa Capital Verde 2020
para percebermos a força que no século XIX o Jardim das Necessidades teve na
capital e a repercussão que dele se sentiu por todo o país.
Para quem não
possa ir à Biblioteca Nacional ver e aprender com esta extraordinária exposição
promovida pela Associação de Jardins Históricos ( AJH) liderada pela arquiteta
paisagista Teresa Andresen, pode mergulhar no site da AJH (https://jardinshistoricos.pt/project/view/19)
e conhecer cerca de 800 jardins e sítios históricos de Portugal.
É tempo de
proteger a sério a Tapada das Necessidades e de a valorizar com um restauro
completo e com uma entrega à população de Lisboa que possa ser celebrada como
uma marca de respeito pelo património da cidade. Os movimentos de defesa da
Tapada, que espontaneamente se mobilizaram para defender este jardim contra a
sua modernização e perda do encanto histórico, revelam bem o que os jardins
urbanos e públicos passaram a significar para a população de Lisboa depois da
experiência do confinamento. Eles foram o escape que deu lugar ao encontro com
a viva realidade da natureza. A jardinagem foi um elo de ligação à vida,
fazendo disparar a venda de ferramentas de jardinagem e de plantas. A
proximidade de um jardim para passear em silêncio foi para muitos a salvação.
Vamos agora "urbanizar", encher de ruído, luzes e desassossego aquilo
que chegou ao século XXI intacto?
Que a câmara
municipal, representante de nós todos na gestão da cidade, ponha em marcha um
verdadeiro plano de salvaguarda que salve e guarde os dez hectares que na sua
maior parte são património e podem ser orgulho de uma Lisboa verde do século
XXI. Este parece ser o desejo de muitos e é certamente um anseio de quem
percebeu com a pandemia de covid-19 a verdadeira função dos jardins nas
cidades.
(1) Hans
Christian Andersen, Uma Visita em Portugal em 1866, Lisboa, Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, 1984, p. 44.
(2) João A.
Carreiras, A Evolução das Necessidades: do Barroco ao Paisagismo, in Jardins e
Cerca das Necessidades, C. Castel-Branco, Sónia T. Azambuja, João A. Carreiras,
Livros Horizonte, Lisboa, 2001, p. 101.
(3) Para a lista
das 562 novas espécies introduzidas no jardim das Necessidades ver o livro
Jardins e Cerca das Necessidades, p. 172-177. Este levantamento foi efetuado
por Sónia T. Azambuja e João A. Carreiras a partir das encomendas de plantas
para a Real Quinta das Necessidades entre os anos de 1841 e 1867.
Arquiteta paisagista,
professora da Universidade de Lisboa
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