segunda-feira, 10 de maio de 2021

Levantar as patentes das vacinas é uma boa ideia? Bem, é complicado

 


COVID-19

Levantar as patentes das vacinas é uma boa ideia? Bem, é complicado

 

A líder da Organização Mundial do Comércio estabeleceu um prazo-limite para uma decisão sobre o levantamento das patentes: 3 de Dezembro. Mas, apesar do passo histórico da Administração Biden a favor da renúncia, o caminho até ao consenso será longo e atribulado. E há muitos que duvidam do sucesso.

 

Tyler Pager, Dan Diamond e Jeff Stein/The Washington Post

9 de Maio de 2021, 8:08

https://www.publico.pt/2021/05/09/sociedade/noticia/levantar-patentes-vacinas-boa-ideia-bem-complicado-1961667

 

O apoio da Administração Biden a um movimento para levantar as protecções de patentes para vacinas projectou a batalha global contra o coronavírus como um assunto central da política externa dos Estados Unidos, mas uma miríade de obstáculos políticos e práticos permanecem antes que este tema possa tornar-se política internacional — isto se alguma vez vier realmente a acontecer.

 

Na realidade, pode levar meses até que a Organização Mundial do Comércio chegue a um acordo para renunciar temporariamente às protecções de patentes e anos até que os países construam fábricas e acumulem as matérias-primas e conhecimentos para produzir as vacinas, dizem os especialistas.

 

“Eu acho que [o impacto do levantamento] é muito marginal”, diz Rachel Silverman, analista do Center for Global Development, um think tank sem fins lucrativos, que avisou que uma renúncia de propriedade intelectual levanta questões complicadas e não aumentará imediatamente o fornecimento de vacinas aos países mais devastados pela covid-19, como a Índia e o Brasil. “Acho que não terá efeitos radicais. E penso que não fará muito para acelerar a produção.”

 

Ainda assim, Silverman elogiou o Presidente Joe Biden por “acções corajosas e sem precedentes” para dar prioridade à luta contra a pandemia “acima de alguns dos interesses de política externa mais convencionais” dos EUA. Por outro lado, este passo dá um sinal às pessoas dos países em desenvolvimento: “Não somos indiferentes, estamos a ouvi-los e preocupamo-nos em vaciná-los.”

 

Outros especialistas sugerem que, ao colocar a sua força por trás desta proposta, os Estados Unidos pressionam todos os outros interessados, incluindo fabricantes de vacinas e outros países desenvolvidos, para encontrar maneiras mais práticas de acelerar as vacinas para o mundo em desenvolvimento, especialmente num momento em que aumenta o clamor sobre o fosso entre países ricos e pobres. O desespero na Índia, onde apenas 2,2% da população está totalmente vacinada e os hospitais ficaram sem oxigénio, em comparação com os quase 33% da população dos EUA vacinada é demonstrativo do problema.

 

A líder da Organização Mundial do Comércio disse na passada quinta-feira que pressionaria os países-membros a chegarem a um acordo sobre a petição de renúncia até Dezembro, estabelecendo o dia 3 como a meta para um acordo final.

 

“Não é da noite para o dia que seremos capazes de aumentar a escala [de fabricação]”, reconheceu a directora-geral Ngozi Okonjo-Iweala numa entrevista ao The Washington Post, acrescentando: “É muito difícil dizer agora se haverá um consenso, mas acho que seremos capazes de chegar a um acordo pragmático que dará a ambos os lados o conforto necessário de que precisam.”

 

Mesmo com o apoio dos Estados Unidos, o que é já em si uma grande vitória para o mundo em desenvolvimento, um acordo está longe de estar garantido, já que qualquer um dos 164 países-membros poderá torpedear esse esforço.

 

A fúria das farmacêuticas

Após meses de pressão de legisladores independentes e da comunidade internacional, a Administração Biden anunciou o seu apoio à renúncia das patentes na quarta-feira. Biden disse também que o seu apoio ao levantamento seria uma das muitas ferramentas que impulsionariam o esforço global de vacinação. Em Abril, a Casa Branca anunciou que exportaria todo o seu abastecimento da vacina da AstraZeneca — 60 milhões de doses — depois de a Food and Drug Administration, o regulador norte-americano, ter concluído todas as verificações de segurança. Esta vacina ainda não foi autorizada nos EUA.

 

“As negociações baseadas em documentos na OMC levarão tempo, dada a natureza de decisão por consenso da instituição e a complexidade das questões envolvidas, mas esta é uma oportunidade para a OMC se unir para encontrar soluções que ajudem a salvar vidas e usaremos todo o nosso poder de convocação na OMC para esse fim”, disse um porta-voz do representante de Comércio dos EUA num comunicado.

 

Ao colocar a sua força por trás desta proposta, os Estados Unidos pressionam todos os outros interessados, incluindo fabricantes de vacinas e outros países desenvolvidos

 

A decisão da Casa Branca de apoiar o levantamento das patentes enfureceu as empresas farmacêuticas, que alertaram sobre as terríveis consequências para os incentivos de longo prazo no sector. Mas o presidente executivo de um grande fabricante de vacinas minimizou o impacto de curto prazo para a sua empresa, dizendo que “não perdeu um minuto de sono”.

 

“Acredito que não muda nada para a Moderna”, disse o CEO Stéphane Bancel, durante uma conversa com investidores, na manhã de quinta-feira, enumerando as barreiras que, na sua opinião, limitariam outras empresas e países de tirar vantagens das isenções.

 

“Não há capacidade de fabricação de mRNA no mundo — esta é uma tecnologia nova”, acrescentou Bancel. “Não podem contratar pessoas que sabem fazer mRNA. Essas pessoas não existem. E mesmo que todas as coisas estivessem disponíveis, quem quiser fazer vacinas de mRNA terá de comprar máquinas, inventar o processo de fabricação, inventar processos de criação e processos éticos, terá de fazer ensaios clínicos, organizar os dados, aprovar o produto e dimensionar a fabricação. Isso não acontece em seis, 12 ou 18 meses.”

 

“Uma má ideia”

Por seu lado, vários funcionários envolvidos na resposta ao coronavírus dos EUA temem que esta decisão possa prejudicar seu relacionamento com a indústria farmacêutica, afirmando que a Administração Biden está a contar com o levantamento não apenas para aumentar o fornecimento de vacinas, mas também para desenvolver tratamentos e vacinas adicionais para o coronavírus, especialmente devido ao risco de variantes.

 

“Estamos todos a contar com a indústria farmacêutica para encontrar reforços para as vacinas já desenvolvidas. O que acontecerá quando os EUA tentarem chegar à fila da frente?”, disse um funcionário, falando sob condição de anonimato, dado que não tinha autorização para fazer comentários publicamente.

 

No entanto, outro funcionário da Administração Biden, que também falou sob condição de anonimato pela mesma razão, rebateu essa visão, dizendo que os líderes de topo “têm confiança na capacidade de os organismos públicos trabalharem construtivamente com os fabricantes de vacinas para disponibilizar os benefícios vitais para o máximo de pessoas o mais rápido possível, ainda que existam contratos assinados”.

 

Embora a União Europeia tenha sinalizado a sua disposição na quinta-feira para iniciar negociações sobre o levantamento das patentes, um porta-voz da chanceler alemã, Angela Merkel, alertou nesse dia que suspender as protecções à propriedade intelectual prejudicaria o desenvolvimento da indústria farmacêutica. A BioNTech, que fez parceria com a Pfizer na sua vacina, tem sede na Alemanha.

 

Defensores da indústria farmacêutica disseram esperar que outras nações concordem com as preocupações da Alemanha. “É uma má ideia, não resolve o problema e, na verdade, Merkel e seu Governo foram muito claros sobre isso”, disse Joseph Damond, que supervisiona a política internacional da Organização de Inovação em Biotecnologia, ou BIO.

 

No entanto, Damond disse que a BIO já se está a preparar para um potencial “efeito dominó”, quando outros países seguirem a ideia da Administração Biden, pedindo negociações com a OMC. Se esse efeito acontecer, o grupo diz que tem uma lista de recomendações para as negociações de isenção daí resultantes, um guia que tentará garantir que as empresas americanas sejam protegidas de “coacção” por governos estrangeiros para a transferência da sua tecnologia.

 

À medida que as negociações sobre o levantamento avançam, uma das questões mais urgentes é sobre como actuar se a China, a Rússia e outros adversários comerciais dos EUA tiverem acesso à cobiçada tecnologia, uma questão à qual os republicanos já se agarraram para criticar a decisão de Joe Biden.

 

Os republicanos no Congresso classificaram a posição de Biden como uma falha de segurança nacional, dizendo que a sua decisão entregaria os avanços tecnológicos financiados pelos contribuintes americanos a países rivais.

 

“É perigoso para os Estados Unidos aceitar a retirada de patentes de vacinas para a covid-19 que salvam vidas agora e que custaram biliões de dólares às empresas, que as desenvolverem a um ritmo histórico — este acesso à inovação dos EUA seria uma recompensa para a China, que criou esta pandemia”, disse através de um comunicado o republicano Kevin Brady, do Texas, líder do seu partido no House Ways and Means Committee.

 

Joe Grogan, que liderou o Conselho de Política Nacional durante a administração Trump e anteriormente fez lobby para a Gilead Sciences, uma empresa de biofarmacologia, disse que as empresas farmacêuticas estão particularmente irritadas com o facto de a Administração Biden ter apoiado o levantamento enquanto atrasa os esforços das empresas para vender as suas vacinas no exterior. “Isto é uma traição total”, disse Grogan, membro da University of Southern California. “Falei com pessoas da indústria que votaram em Biden e que estão muito furiosas com isto.”

 

Em resposta, a Casa Branca garante nunca ter proibido a venda e exportação de vacinas contra o coronavírus. E os defensores do levantamento de patentes disseram-se optimistas, apesar de haver obstáculos significativos.

 

Lori Wallach, que supervisiona a política comercial global para a organização de defesa do consumidor Public Citizen, disse que é “impossível exagerar” o impacto da decisão de quarta-feira.

 

Wallach citou o papel histórico dos Estados Unidos em dar prioridade à protecção da propriedade intelectual sobre a saúde pública, dizendo que o “anúncio da Administração por si só envia sinais poderosos aos governos dos países em desenvolvimento e às farmacêuticas para planearem mais produção”.

 

A mesma responsável diz que a mensagem de Joe Biden aos fabricantes de vacinas dos EUA é como se “Igor pedisse ao Drácula para tentar temporariamente uma dieta vegana para salvar o mundo, se não…”.

 

“Sim, a indústria farmacêutica tentará inviabilizar as negociações actuais para o levantamento. Há uma grande batalha pela frente. Mas esse levantamento acontecerá”, prevê Wallach.

 

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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