COVID-19
Levantar as patentes das vacinas é uma boa ideia? Bem, é
complicado
A líder da Organização Mundial do Comércio estabeleceu um
prazo-limite para uma decisão sobre o levantamento das patentes: 3 de Dezembro.
Mas, apesar do passo histórico da Administração Biden a favor da renúncia, o
caminho até ao consenso será longo e atribulado. E há muitos que duvidam do
sucesso.
Tyler Pager, Dan
Diamond e Jeff Stein/The Washington Post
9 de Maio de
2021, 8:08
O apoio da
Administração Biden a um movimento para levantar as protecções de patentes para
vacinas projectou a batalha global contra o coronavírus como um assunto central
da política externa dos Estados Unidos, mas uma miríade de obstáculos políticos
e práticos permanecem antes que este tema possa tornar-se política
internacional — isto se alguma vez vier realmente a acontecer.
Na realidade,
pode levar meses até que a Organização Mundial do Comércio chegue a um acordo
para renunciar temporariamente às protecções de patentes e anos até que os
países construam fábricas e acumulem as matérias-primas e conhecimentos para
produzir as vacinas, dizem os especialistas.
“Eu acho que [o
impacto do levantamento] é muito marginal”, diz Rachel Silverman, analista do
Center for Global Development, um think tank sem fins lucrativos, que avisou
que uma renúncia de propriedade intelectual levanta questões complicadas e não
aumentará imediatamente o fornecimento de vacinas aos países mais devastados
pela covid-19, como a Índia e o Brasil. “Acho que não terá efeitos radicais. E
penso que não fará muito para acelerar a produção.”
Ainda assim,
Silverman elogiou o Presidente Joe Biden por “acções corajosas e sem
precedentes” para dar prioridade à luta contra a pandemia “acima de alguns dos
interesses de política externa mais convencionais” dos EUA. Por outro lado,
este passo dá um sinal às pessoas dos países em desenvolvimento: “Não somos
indiferentes, estamos a ouvi-los e preocupamo-nos em vaciná-los.”
Outros
especialistas sugerem que, ao colocar a sua força por trás desta proposta, os
Estados Unidos pressionam todos os outros interessados, incluindo fabricantes
de vacinas e outros países desenvolvidos, para encontrar maneiras mais práticas
de acelerar as vacinas para o mundo em desenvolvimento, especialmente num
momento em que aumenta o clamor sobre o fosso entre países ricos e pobres. O
desespero na Índia, onde apenas 2,2% da população está totalmente vacinada e os
hospitais ficaram sem oxigénio, em comparação com os quase 33% da população dos
EUA vacinada é demonstrativo do problema.
A líder da
Organização Mundial do Comércio disse na passada quinta-feira que pressionaria
os países-membros a chegarem a um acordo sobre a petição de renúncia até
Dezembro, estabelecendo o dia 3 como a meta para um acordo final.
“Não é da noite
para o dia que seremos capazes de aumentar a escala [de fabricação]”,
reconheceu a directora-geral Ngozi Okonjo-Iweala numa entrevista ao The
Washington Post, acrescentando: “É muito difícil dizer agora se haverá um
consenso, mas acho que seremos capazes de chegar a um acordo pragmático que
dará a ambos os lados o conforto necessário de que precisam.”
Mesmo com o apoio
dos Estados Unidos, o que é já em si uma grande vitória para o mundo em
desenvolvimento, um acordo está longe de estar garantido, já que qualquer um
dos 164 países-membros poderá torpedear esse esforço.
A fúria das farmacêuticas
Após meses de pressão
de legisladores independentes e da comunidade internacional, a Administração
Biden anunciou o seu apoio à renúncia das patentes na quarta-feira. Biden disse
também que o seu apoio ao levantamento seria uma das muitas ferramentas que
impulsionariam o esforço global de vacinação. Em Abril, a Casa Branca anunciou
que exportaria todo o seu abastecimento da vacina da AstraZeneca — 60 milhões
de doses — depois de a Food and Drug Administration, o regulador
norte-americano, ter concluído todas as verificações de segurança. Esta vacina
ainda não foi autorizada nos EUA.
“As negociações
baseadas em documentos na OMC levarão tempo, dada a natureza de decisão por
consenso da instituição e a complexidade das questões envolvidas, mas esta é
uma oportunidade para a OMC se unir para encontrar soluções que ajudem a salvar
vidas e usaremos todo o nosso poder de convocação na OMC para esse fim”, disse
um porta-voz do representante de Comércio dos EUA num comunicado.
Ao colocar a sua força por trás desta proposta, os
Estados Unidos pressionam todos os outros interessados, incluindo fabricantes
de vacinas e outros países desenvolvidos
A decisão da Casa
Branca de apoiar o levantamento das patentes enfureceu as empresas
farmacêuticas, que alertaram sobre as terríveis consequências para os
incentivos de longo prazo no sector. Mas o presidente executivo de um grande
fabricante de vacinas minimizou o impacto de curto prazo para a sua empresa,
dizendo que “não perdeu um minuto de sono”.
“Acredito que não
muda nada para a Moderna”, disse o CEO Stéphane Bancel, durante uma conversa
com investidores, na manhã de quinta-feira, enumerando as barreiras que, na sua
opinião, limitariam outras empresas e países de tirar vantagens das isenções.
“Não há
capacidade de fabricação de mRNA no mundo — esta é uma tecnologia nova”,
acrescentou Bancel. “Não podem contratar pessoas que sabem fazer mRNA. Essas
pessoas não existem. E mesmo que todas as coisas estivessem disponíveis, quem
quiser fazer vacinas de mRNA terá de comprar máquinas, inventar o processo de
fabricação, inventar processos de criação e processos éticos, terá de fazer
ensaios clínicos, organizar os dados, aprovar o produto e dimensionar a
fabricação. Isso não acontece em seis, 12 ou 18 meses.”
“Uma má ideia”
Por seu lado,
vários funcionários envolvidos na resposta ao coronavírus dos EUA temem que
esta decisão possa prejudicar seu relacionamento com a indústria farmacêutica,
afirmando que a Administração Biden está a contar com o levantamento não apenas
para aumentar o fornecimento de vacinas, mas também para desenvolver
tratamentos e vacinas adicionais para o coronavírus, especialmente devido ao
risco de variantes.
“Estamos todos a
contar com a indústria farmacêutica para encontrar reforços para as vacinas já
desenvolvidas. O que acontecerá quando os EUA tentarem chegar à fila da
frente?”, disse um funcionário, falando sob condição de anonimato, dado que não
tinha autorização para fazer comentários publicamente.
No entanto, outro
funcionário da Administração Biden, que também falou sob condição de anonimato
pela mesma razão, rebateu essa visão, dizendo que os líderes de topo “têm
confiança na capacidade de os organismos públicos trabalharem construtivamente
com os fabricantes de vacinas para disponibilizar os benefícios vitais para o
máximo de pessoas o mais rápido possível, ainda que existam contratos
assinados”.
Embora a União
Europeia tenha sinalizado a sua disposição na quinta-feira para iniciar
negociações sobre o levantamento das patentes, um porta-voz da chanceler alemã,
Angela Merkel, alertou nesse dia que suspender as protecções à propriedade
intelectual prejudicaria o desenvolvimento da indústria farmacêutica. A
BioNTech, que fez parceria com a Pfizer na sua vacina, tem sede na Alemanha.
Defensores da
indústria farmacêutica disseram esperar que outras nações concordem com as
preocupações da Alemanha. “É uma má ideia, não resolve o problema e, na
verdade, Merkel e seu Governo foram muito claros sobre isso”, disse Joseph
Damond, que supervisiona a política internacional da Organização de Inovação em
Biotecnologia, ou BIO.
No entanto,
Damond disse que a BIO já se está a preparar para um potencial “efeito dominó”,
quando outros países seguirem a ideia da Administração Biden, pedindo
negociações com a OMC. Se esse efeito acontecer, o grupo diz que tem uma lista
de recomendações para as negociações de isenção daí resultantes, um guia que
tentará garantir que as empresas americanas sejam protegidas de “coacção” por
governos estrangeiros para a transferência da sua tecnologia.
À medida que as
negociações sobre o levantamento avançam, uma das questões mais urgentes é
sobre como actuar se a China, a Rússia e outros adversários comerciais dos EUA
tiverem acesso à cobiçada tecnologia, uma questão à qual os republicanos já se
agarraram para criticar a decisão de Joe Biden.
Os republicanos
no Congresso classificaram a posição de Biden como uma falha de segurança
nacional, dizendo que a sua decisão entregaria os avanços tecnológicos
financiados pelos contribuintes americanos a países rivais.
“É perigoso para
os Estados Unidos aceitar a retirada de patentes de vacinas para a covid-19 que
salvam vidas agora e que custaram biliões de dólares às empresas, que as
desenvolverem a um ritmo histórico — este acesso à inovação dos EUA seria uma
recompensa para a China, que criou esta pandemia”, disse através de um
comunicado o republicano Kevin Brady, do Texas, líder do seu partido no House
Ways and Means Committee.
Joe Grogan, que
liderou o Conselho de Política Nacional durante a administração Trump e
anteriormente fez lobby para a Gilead Sciences, uma empresa de biofarmacologia,
disse que as empresas farmacêuticas estão particularmente irritadas com o facto
de a Administração Biden ter apoiado o levantamento enquanto atrasa os esforços
das empresas para vender as suas vacinas no exterior. “Isto é uma traição
total”, disse Grogan, membro da University of Southern California. “Falei com
pessoas da indústria que votaram em Biden e que estão muito furiosas com isto.”
Em resposta, a
Casa Branca garante nunca ter proibido a venda e exportação de vacinas contra o
coronavírus. E os defensores do levantamento de patentes disseram-se
optimistas, apesar de haver obstáculos significativos.
Lori Wallach, que
supervisiona a política comercial global para a organização de defesa do
consumidor Public Citizen, disse que é “impossível exagerar” o impacto da
decisão de quarta-feira.
Wallach citou o
papel histórico dos Estados Unidos em dar prioridade à protecção da propriedade
intelectual sobre a saúde pública, dizendo que o “anúncio da Administração por
si só envia sinais poderosos aos governos dos países em desenvolvimento e às
farmacêuticas para planearem mais produção”.
A mesma responsável
diz que a mensagem de Joe Biden aos fabricantes de vacinas dos EUA é como se
“Igor pedisse ao Drácula para tentar temporariamente uma dieta vegana para
salvar o mundo, se não…”.
“Sim, a indústria
farmacêutica tentará inviabilizar as negociações actuais para o levantamento.
Há uma grande batalha pela frente. Mas esse levantamento acontecerá”, prevê
Wallach.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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