terça-feira, 31 de julho de 2012

Aquilo que faz falta ao "Zé". A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 21/12/2009 in Público.



Aquilo que faz falta ao "Zé"
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


A Internet e o seu potencial e velocidade de manifestação tornaram-se no pesadelo dos políticos.

Com efeito, aquilo a que se assistiu no séc. XX, com o aparecimento da World Wide Web, representa em autonomização e individualização da capacidade de manifestação de ideias, algo só comparável à "revolução de Gutenberg", cuja invenção da impressão mecânica libertou a palavra escrita do domínio absoluto da Igreja, e levou à revolução protestante.

Portanto, tal como então, o "génio está fora da garrafa", mas agora à velocidade do clique, e não há maneira de o controlar.

Perante a crise acentuada de credibilidade que os políticos vivem, os portugueses emanciparam-se, passaram à segunda plataforma do processo de manifestação e participação democrática, e transformaram-se na sociedade civil, munidos de uma arma e espaço impossível de controlar. A Internet.

Hoje em dia, independente-mente dos seus antecedentes ideológicos e das convicções políticas presentes, os cidadãos encontram-se no "fórum" de manifestação cívica, unidos apenas pelos temas de intervenção.

Ora, o fenómeno "Zé" constitui uma evidência de tal forma explícita da conspurcação deste processo, que se torna quase num mistério. Ele, por si só, não merece a nossa atenção, mas apenas porque é um eleito que se revela prisioneiro do mecanismo "politiqueiro" e, portanto, capaz de causar destruição.

Vindo da democracia participativa, paladino de causas, representante da sociedade civil e da cidadania, o "Zé" teve uma evolução e demonstrou uma capacidade de adaptação ao jogo maquiavélico da "politiqueira", com "tiques" que ultrapassaram a velocidade dos "cliques" internéticos.

Assim, neste último caso do Jardim do Príncipe Real, foi revelado um tal autismo, um tal cultivo do vago e impreciso, um tal desprezo pelos eleitores, atingindo o seu ponto culminante na trapalhada de esclarecimentos ilustrada pelo artigo do PÚBLICO da autoria do José António Cerejo, incluindo "manobras" e "teses" paralelas de assessor e improvisação de licenciamentos, que poderemos considerar que foi já atingido o estado "adulto" da "politiqueira".

Ora isto, na área dos espaços verdes torna-se particularmente grave, especialmente quando se trata de um todo, como no caso do Príncipe Real, indivisível, entre ideal paisagístico, conceito urbano e arquitectura.

Apesar de tardio no séc. XIX, o Príncipe Real representa o único exemplo em Lisboa do square à inglesa, com a respectiva english landscape no seu conceito de jardim.

Portanto, o que estamos à assistir, é à repetição da mesma atitude aplicada no edificado da Lisboa romântica, com a mesma destruição do património, agora vivo, em nome de um conceito vago de "requalificação".

Mas esta atitude também transporta em si, implícita e explicitamente, o "tique" do "quero, posso e mando", tratando os eleitores como atrasados mentais ou velhos do Restelo.

Perante isto, surge a World Wide Web como o espaço livre de acção e manifestação, através dos seus blogues, redes sociais e correio electrónico.

Assim, neste caso específico, no mesmo dia em que a quantidade de árvores a cortar, a sacrificar, passava "de seis e uma de grande porte" a 47, podia-se seguir na Net, a velocidade a que a sociedade civil, digeria o choque, reagia e se organizava...

Perante o argumento da presumível doença ou fraqueza estrutural das árvores, as explicações devem ser dadas antes do acontecimento e não durante a operação-relâmpago.

Perante o argumento das espécies invasoras, ter-se-á que ter em conta que estamos a lidar com entidades vivas... não se trata de objectos decorativos descartáveis. Uma árvore substituta levará quarenta anos a atingir o seu estado adulto.

Portanto, o "Zé", que se pretendia perfilar, agora, como paladino verde, não poderia também, no plano do simbólico ter escolhido pior momento para esta acção... o período em que o planeta tenta decidir sobre o seu sombrio destino ambiental em Copenhaga. Chegou portanto a altura de nos perguntarmos, não se "o Zé faz falta" mas o que faz falta ao "Zé"!

Historiador de Arquitectura

Trapalhadas "monumentais" na Sé de Lisboa. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 1/11/2009 in Público.




Trapalhadas "monumentais" na Sé de Lisboa
Por António Sérgio Rosa de Carvalho.


"We have no right whatever to touch them. They are not ours !
John Ruskin."
Esta frase de Ruskin, famosa para todos aqueles que se ocupam dos conceitos do restauro em monumentos históricos, parece ser, no presente, completamente desconhecida para os responsáveis eclesiásticos da Sé da Lisboa.

Antes de tudo, não parece demais relembrar que quando falamos da Sé de Lisboa estamos a falar de um monumento construído em 1150, três anos depois da reconquista de Lisboa por D. Afonso Henriques.

A Sé foi ao longo dos séculos modificada com acrescentos de diversas épocas e reinos, sofreu danos provocados por diversos terramotos e foi restaurada sobre a influência de diversos conceitos. Uns hoje em dia mais aceitáveis que outros. Mas, provavelmente, nunca terá sido alvo de um tipo de intervenção com a ligeireza, irresponsabilidade e consequente gravidade como a que decorreu há pouco tempo.

O que aconteceu? Só conhecemos os graves efeitos... desconhecemos, apesar de terem sido pedidas explicações ao patriarcado, quem são realmente os responsáveis e o que tencionam fazer com as graves consequências dos seus actos, que afectaram gravemente a integridade física deste monumento tão importante para a História de Lisboa e para a época da fundação de Portugal. O que podemos concluir das hesitantes e trágicas "declarações" do cónego Lourenço e do padre Edgar Clara à comunicação social é de que, impacientes com a demora de um necessário restauro de um gradeamento no portão norte, resolveram "deitar mãos à obra" por iniciativa própria, pondo um "jeitoso" pedreiro, sem qualquer acompanhamento técnico especializado por parte do Igespar, a "atacar" os blocos seculares através de um disco mecânico de diamante (!). Assim, a modos como quem muda um portão numa "vivenda", numa periferia manhosa.

O testemunho das fotografias tiradas ainda quando a obra decorria não mente. O desenrascado artífice atacava a base das colunetas, arrancando blocos seculares que eram nitidamente visíveis no chão, e depois passava a cobrir os vazios com placas de pedra com a espessura de centímetro e meio, e bordadura. "Axim", a modos de umas obras de casa de banho (!).

A mente humana é misteriosa. Quando a realidade é insuportável, procuramos uma fuga no surreal. Assim, vi-me de repente, perante a gravidade e o absurdo surrealista da situação, a imaginar os distintos eclesiásticos numa situação parecida com a famosa cena do filme Bean onde este conhecido comediante vandaliza o insubstituível quadro Whistler"s mother de forma irreversível, e tenta esconder as terríveis consequências.

Mas não temos razões para rir. O próprio Igespar também ainda não deu explicações do que é que tenciona fazer em relação à situação. E onde estão as pedras originais vandalizadas? De que época e a que intervenção correspondem? Teremos que concluir que a extinção da Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais foi precipitada? Que o Igespar é um paquiderme inoperante? Será que Portugal está doente?

Historiador de Arquitectura

"Experimentações" no Jardim de Santos. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 11/10/2009 in Público.





"Experimentações" no Jardim de Santos
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Atordoados com a avalancha defait-divers, extenuados pelas campanhas eleitorais, algum rigor nos é necessário para manter o discernimento no que respeita o essencial. Aquilo que é realmente importante. O que é realmente importante é que no período entre 6 e 18 de Dezembro vai tomar lugar a Kopenhagen Climate Conference onde o destino do planeta vai ser decidido. Os olhos estão postos nela com esperança numa nova atitude dos EUA, através de Obama, e numa lenta consciencialização que toma lugar na China e irá ter forçosamente influência na atitude na Índia. O discurso inaugural e de afirmação de Durão Barroso, após a sua reeleição, dedicou-se quase exclusivamente à importância determinante e à prioridade urgente deste tema. Estamos numa encruzilhada civilizacional onde uma nova revolução industrial terá que tomar lugar, que nos garanta uma reconciliação com a natureza e o planeta, deixando definitivamente para trás toda a herança do positivismo, e leve a uma reforma do capitalismo, que não poderá continuar a basear a sua dinâmica numa ideia de crescimento ilimitado e insustentável.

Perante isto, o Jardim de Santos surge como um oásis, que, embora esquecido, ainda lá está nas suas características românticas, onde todas as suas magníficas árvores estão legalmente protegidas. Ora, perante o marasmo e a crise profunda do comércio tradicional, a zona de Santos surge como algo positivo, através da concentração de um comércio de qualidade na área do design.Surge como uma área de vocação estabelecida, tal como S. Bento se consolidou como zona de antiquários. Além disso, esta zona desenvolveu uma dinâmica nocturna que se irá consolidar no futuro devido à sua proximidade do rio. Mas Santos também é um bairro residencial, que tem direito a repouso, a serenidade, a contemplação e ao silêncio. A sobrecarga erosiva e "ácida" que a vida nocturna arrasta em poluição sonora e desequilíbrio de comportamentos sociais está bem patente na vandalização a que o Jardim de Santos está exposto permanentemente.

Vem agora a Experimenta Design, através de uma campanha denominada It"s about timeque lhe incute um carácter afirmativo de uma "outra urgência", defender um projecto para o jardim que perversamente pretende ser vanguardista. Implicitamente usa uma retórica de inovação e ruptura que lhe garante, por isso mesmo, uma autoridade cultural que só a superioridade daavant-gardepode garantir. Pretende assim mutilar as árvores com "tatuagens", abrir "chagas" na pele das árvores protegidas. Fazer "instalações" sonoras alterando completamente o equilíbrio do habitat, no que respeita os seus ciclos de luz e de silêncio. Além de colocar sistemas de iluminação que irão ter o mesmo efeito, pretende instalar uma casa metálica numa árvore, perversão corrosiva da "cabana". Claro que os bancos românticos irão ser substituídos por outros em cimento e um bar irá ser instalado no jardim, garantindo assim uma espécie de espaçolounge, uma espécie de área de expansão e colonização oficializada do jardim pelos estabelecimentos nocturnos,all night long. O que se passa aqui é uma perversa inversão de valores, que perante a importância das verdadeiras ansiedades descritas no início deste texto são profundamente reaccionárias, datadas e prisioneiras de um falso vanguardismo. Tomou-se a resolução, talvez por pudor de expor esta figura ao jardimplay-station, de recolocar a estátua de Ramalho Ortigão noutro local.

Devo avisar que a Experimenta pode esperar pior do que uma simples retaliação da tão ilustre figura literária. Sentado de forma contemplativa e atento, entre as brisas, aos murmúrios vegetais, eu sei que as árvores planeiam uma revolta em massa, tipo revolta das árvores contra Saruman e o seu diabólico projecto contra a natureza, noSenhor dos Anéis. Portanto não só a "cabana" vai ser sacudida e o bar esmagado, mas os bancos de cimento vão servir de armas de arremesso a estas árvores em revolta. Já se distingue claramente nos murmúrios vegetais uma ameaça latente que pulsa dizendo: "Vão "experimentar" para outro lado", ou em linguagem de designer:It is about time"... to buzz off!!

Historiador de Arquitectura

Marquises, caixotes de ar condicionado e outras excrescências .A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho . 6/09/2009 in Público.





Marquises, caixotes de ar condicionado e outras excrescências 
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


O tema das marquises e da forma como estas excrescências têm invadido, como verrugas, a pele dos nossos edifícios, tem sido motivo de desespero para todos aqueles preocupados com o património de Lisboa.

Com efeito, a varanda, espaço-plataforma que devia garantir o nosso contacto natural com os elementos; que devia ser terraço, jardim suspenso, espaço de lazer e transição térmica natural num clima com as nossas caracteristicas, foi transformada através da marquise, irracionalmente, em estufa asfixiante e excrescência desfiguradora.

O desespero vem do sentimento que este fenómeno, tão terceiro-mundista, parece constituir uma fatalidade irreversivel e incontrolável, tal como os carros em cima dos passeios ou os "cachos" de caixotes de ar condicionado que invadiram tudo quanto é fachada.

Tomámos conhecimento através do PÚBLICO, que alguém tomou a iniciativa louvável de desencadear uma campanha sensibilizadora, tendo como objectivo, se não acabar, pelo menos inverter progressivamente esta calamidade. Este texto tem como objectivo contribuir através de uma proposta concreta, "de facto" para o sucesso progressivo desta campanha. A única forma efectiva de desenvolver um exemplo estimulante e pedagógico, capaz de mudar mentalidades e estabelecer disciplina, é conseguir uma situação de conjunto, onde num conjunto arquitectónico significativo, a situação seja invertida e o desastre e o atentado sejam corrigidos.

Na história do urbanismo português, a Baixa pombalina e o bairro de Alvalade constituem dois exemplos paradigmáticos.

No entanto, além da diferença fundamental de discursos determinada pelas diferentes épocas, eles só são comparáveis não só na escala gigantesca dos projectos urbanisticos, mas também pelo facto de que foram executados na íntegra. Fora disso, enquanto um, o da Baixa, nasce da urgência de reconstrução do centro depois do cataclismo, e é portanto sistemático tanto na linguagem arquitectónica unificada e única, como nos métodos de produção, o outro apresenta características diferentes.

O bairro de Alvalade é planeado por Faria da Costa, e conhece o início da sua execução coerente, na década do apogeu do Estado Novo, ou seja os anos 40. Ele é desenvolvido, em diversas fases e células, numa dialéctica simbiótica de diversas inspirações e modelos internacionais, e da "receita-síntese" tradicionalismo-modernismo.

Dentro dele, o bairro das Estacas (1949) surge como uma peça única para a época, de pura influência CIAM - Carta de Atenas (1933) e de linguagem corbusiana, com todos os seus elementos de morfologia e detalhes arquitectónicos (pilotis, brise-soleils, etc). O estado de conservação e de alienação deste notável conjunto é lastimável.

Ainda por cima, quando sabemos que o Icomos dispõe de um departamento dedicado aos monumentos do modernismo, o Docomomo, com trabalho internacional de restauro, ou mesmo de reconstruções integrais, de grande prestígio (Openlucht School Amsterdam, Zonnenstraal Sanatorium Hilversum, Café de Unie Roterdam, Pavilhão de Barcelona, etc., etc.,)

Não teríamos aqui uma oportunidade de classificação de conjunto urbano, de restauro integral e de limpeza de todas as excrescências como marquises, caixotes de ar condicionado e cabos pendurados? Esta mensagem é dirigida à CML, ao Ministério da Cultura e acima de tudo ao Igespar, lembrando esta última instituição de que a forma de como "arrumou" o caso da Classificação do Bairro Social do Arco Cego, é simplesmente inaceitável!

Historiador de Arquitectura

Uma questão de promiscuidades. A Opinião de António sérgio rosa de Carvalho. 19/07/2009 in Público.





Uma questão de promiscuidades
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


"A cidadania não vai a votos. A cidadania exerce-se"! Num texto anterior publicado no PÚBLICO, afirmava isto, motivado pela necessidade de defender "um cordão sanitário" entre a jovem e frágil democracia participativa e a erodida e desprestigiada democracia representativa.

Algo mais, já então, me motivava. A consciência intuitiva de que Helena Roseta pertencia àquele grupo de políticos profissionais que, conscientes do cansaço, erosão e de um progressivo distanciamento dos votantes, encontrava nos "cidadãos" participativos uma fórmula "refrescante" e uma oportunidade de "reformatar" o discurso. A máscara caiu. A razão diz-nos que não é supreendente, mas o sentimento exalta uma indignação, perante um sentimento de manipulação, ou mesmo, e é preciso dizê-lo, de traição.

A enorme bofetada que Helena Roseta dá em todos aqueles que seguiram o seu discurso de independência implica também uma enorme machadada na jovem e frágil democracia participativa, e, consequentemente, directa e indirectamente, na credibilidade da já tão doente democracia representativa.

Ela, de forma brutal, projecta todos aqueles que acreditaram numa plataforma de participação transversal aos ciclos políticos, num espaço ecléctico e pluralista de manifestação de individuos-cidadãos, unidos apenas pela urgência dos temas, novamente, na polarização dos blocos políticos e dos aparelhos ideológicos.

Ela mata, assim, uma dialéctica estimulante e melhoradora da própria democracia ao, de forma facciosa e oportunista, querer monopolizar a cidadania para um campo da "esquerda", como se tal fosse possivel...

Esta atitude é comparável à afirmação de que o humanismo do séc. XXI, a consciência ambiental, a ecologia e a consciência urgente da necessidade imperativa da salvaguarda ecológica do planeta são exclusivos da "esquerda".

É por isto que eu afirmo claramente aqui que já sei em quem não vou votar... E, ao contrário do prof. Carmona,

digo-o: não vou votar no triunvirato Costa-Zé-Roseta.

Em quem vou votar, como muitos, não sei...

Portanto, apelos aos restantes para me convencerem, dizendo desde já que:

- não quero mais trapalhadas urbanísticas com histórias de permutas, trocas, baldrocas;

- não quero, pelo menos no primeiro mandato, mais obras públicas com orçamentos "em derrapagem";

- não quero mais encomendas a arquitectos do star system, a cobrarem fortunas por "maquetas" feitas de caixas de sapatos;

- não quero mais destruição do património arquitectónico, através da especulação imobiliária ou da "criatividade" corporativa dos arquitectos, não só nas avenidas românticas, mas em toda a Lisboa. Isto implica Largo do Rato, Terreiro do Paço, etc, etc.

Quero:

- reabilitação, reabilitação, reabilitação... urbana, com responsabilidade técnica e grande rigor na perspectiva da salvaguarda do património;

- a Baixa classificada como Património Mundial e a respectiva carta de valores e regras que isso implica;

- repovoamento do centro histórico;

- estratégia e planeamento na área do urbanismo comercial;

- gestão equilibrada na estratégia do trânsito e do estacionamento, incluindo uma Autoridade Metropolitana de Lisboa e um Regulamento de Cargas e Descargas;

- gestão dos espaços verdes;

- ao menos, a existência de uma política cultural e museológica para a cidade de Lisboa.

Bem, não tenho mais espaço... Acima de tudo, viva Lisboa! Lisboa merece mais.

Historiador de Arquitectura

Cidadãos saúdam alterações ao projecto do Terreiro do Paço e reclamam uso dos edifícios. 28/06/2009 in Público.




Cidadãos saúdam alterações ao projecto do Terreiro do Paço e reclamam uso dos edifícios
Por Inês Boaventura

A apresentação ontem promovida pela Frente Tejo reuniu mais de cem pessoas. António Costa admite que a versão alterada "está melhor" do que a inicial


Vários dos intervenientes na apresentação pública do projecto para o Terreiro do Paço promovida ontem pela sociedade Frente Tejo apelaram à obtenção de uma solução de compromisso, por ser impossível chegar a um desenho que a todos agrade, e ao arranque de um outro debate: o do uso futuro dos edifícios da praça, dos quais os cidadãos estão actualmente "espoliados".

A palavra foi usada pelo historiador Rui Tavares, que afirmou ser "a altura certa" para se iniciar este debate, que confessou ser aquele que lhe "mete mais medo". Para promover a "recuperação cidadã desta praça", este interveniente sugeriu a instalação do Museu da Língua Portuguesa, projectado para Belém.

Também um morador na zona do Terreiro do Paço pediu que esta seja "entregue aos cidadãos", através da atribuição de um novo uso ao "enxame de ministérios" ou pelo menos aos seus pisos térreos. Já um "candidato a utente da praça" frisou que se os edifícios não forem abertos ao público o projecto de requalificação que tanta celeuma tem suscitado "não vale a pena", acrescentando que aquilo que mais quer para o futuro do espaço "é não ter quinquilharia e ir ter com o rio, que é nosso".

Mas na apresentação pública pela qual passaram mais de cem pessoas houve também quem se detivesse ainda no desenho do arquitecto Bruno Soares para o Terreiro do Paço, fosse para se congratular com as alterações introduzidas desde o estudo prévio ou para manifestar o seu desagrado. Um dos mais ferozes críticos foi o historiador de arquitectura António Sérgio Rosa de Carvalho, que acusou o projecto de ter "muitos gatafunhos": "É pegar numa peça perfeita e embrulhá-la em papel da McDonald's", disse, quase exaltado.

Na apresentação prévia, Bruno Soares voltou a justificar a manutenção dos losangos no chão da placa central, que tantas críticas tem gerado, acrescentando um novo argumento à intenção de "mostrar que a praça é de facto grande". Agora, o arquitecto explica também que a introdução de uma gravilha aglomerada para manter "a memória do terreiro" obriga a um "sistema construtivo de sustentação" desse material, que é conseguido através da "malha das diagonais". Tanto Rosa de Carvalho como Rui Tavares refutaram a importância da "memória do terreiro".

"Isto é uma praça do século XVIII, não é um terreiro do século XVI", afirmou Rui Tavares, criticando as linhas das cartas de marear projectadas para os passeios junto às arcadas e os losangos da placa central, para a qual defendeu que a haver alguma marcação ela deveria ser radial, numa referência ao período iluminista e ao Rei Sol. Já o presidente da Câmara de Lisboa admitiu que o projecto revisto "está melhor do que estava antes", garantindo que enquanto autarca só invocará o argumento da estética para travar o avanço de um projecto se ele for "horrível".

Ourivesaria patrimonial em Guimarães.A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 7/06/2009 in Público.




Ourivesaria patrimonial em Guimarães
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


O anúncio de um acontecimento de relevo para o prestígio e a imagem do país tomou lugar praticamente desapercebido. Refiro-me à comprovação de que Guimarães irá ser a Capital Europeia da Cultura em 2012.

Guimarães é uma das únicas cidades portuguesas que apresentam um centro histórico completamente restaurado (em lugar de "recuperado") e completamente habitado. E aqui refiro-me a um conceito de reabilitação urbana rigoroso baseado no restauro e não num conceito vago de "recuperação" que permite todas as aventuras interpretativas, "criativas" e "modernas".

Assim, a reconstituição da imagem histórica foi conseguida, desenvolvendo um restauro de tipologias, portas, janelas, coberturas, interiores, com grande atenção para a autenticidade dos materiais, dos detalhes e pormenores, num exercício de ourivesaria patrimonial em cada edifício, transformando todo o conjunto numa grande jóia, agora reconhecida na sua qualidade.

Claro que, com uma estratégia de repovoamento integrada, aqui temos a receita para a auto-estima das populações, a identidade local, o prestígio do reconhecimento internacional. Para o conseguir foi necessário um planeamento. O desenvolvimento de uma carta de princípios e regras a seguir para todo o centro, capaz de garantir coerência na diversidade e unidade na variedade. Tudo aquilo que Lisboa não tem.

Além da destruição sistemática da Lisboa romântica a que se tem vindo a assistir, determinada pelos eleitos e com a indiferente conivência do Igespar, depois do anúncio pela sr.ª prof.ª Raquel Henriques da Silva, em conferência, que o projecto da candidatura a Património Mundial estava morto e enterrado, a Baixa, além de abandonada e apodrecida, encontra-se à deriva. Isso é bem visível, aliás, nas intervenções na Baixa, onde cada um faz o que quer.

No entanto, e curiosamente, a Câmara de Lisboa tem ao longo dos anos acumulado uma experiência patrimonial em conhecimento estético e técnico, através do trabalho das suas Unidades de Projecto nos bairros históricos, inegável.

Com efeito, as intervenções das Unidades de Projecto no edificado histórico, no meio do caos e da confusão de valores, determinada pela ausência de arquitectos especializados exclusivamente no restauro, que tem caracterizado as intervenções no geral, sobressaem pela positiva, pois são aquelas em todos os aspectos que mais se tem aproximado duma atitude de restauro.

Mas, infelizmente, esta sabedoria não tem sido aproveitada de forma contínua, coerente e independente, pois as chefias que controlam as mesmas unidades variam com os ciclos políticos.

Tomando assim lugar o conhecido e desesperante fenómeno da "reinvenção" do país em cada ciclo político, com as conhecidas consequências desmotivadoras e efeitos perversos de esbanjamento irresponsável de recursos financeiros e humanos.

Voltando ao Igespar, poder-se-á perguntar: depois da integração da DGMN no inoperante Ippar, criando o pesado paquiderme a que se chama Igespar, qual o resultado na eficácia? Para mais sabendo que a inoperância e a grave falta de efectividade é agravada, em cada ciclo político, pela "reinvenção da pólvora" num processo afirmativo, apenas com objectivos políticos, num método de tabula rasa.

Quanto tempo poderá aguentar o país ainda este estado de coisas?

Enquanto isso, por cada viagem que fazemos à Europa, ao nos serem revelados centros históricos magníficos na sua qualidade de conservação e restauro, cidades ocupadas e vividas, em plena habitação, com pulsantes dinâmicas culturais e actividades económicas, trazemos incrédulos como troféus imagens que exibimos aos amigos, como se vivêssemos noutro continente, noutro planeta, noutra galáxia.

Historiador de Arquitectura

Urgente. Especialista precisa-se para Lisboa! A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 12/04/2009 in Público.




Urgente. Especialista precisa-se para Lisboa! 
Por António Sérgio Rosa de Carvalho

Este título constitui um encore. Com efeito, num artigo escrito há nove anos usei quase o mesmo título, só que em vez de especialista utilizava, então, dermatologista.

Nele descrevia o estado das fachadas e coberturas pombalinas que, como que sofrendo de uma grave doença de pele, se encontravam cobertas de caixotes de ar condicionado e caixas técnicas, invadidas por cabos pendurados caoticamente como lianas, suportando discos e antenas. Como clímax deste atentado, apontava os telhados do Rossio vistos do lado da Praça da Figueira, qual visão surrealista da Praça Nobre de Lisboa, juncados de sucata. Passados nove anos, depois de vários autarcas e de inúmeros estudos, levantamentos, intenções e promessas, nada foi conseguido e esta decadência só se agravou.

Prosseguindo na metáfora do dermatologista, mas alargando o diagnóstico ao todo mais vasto de que padece o "corpo" pombalino ... poderemos perguntar ... onde está o "especialista" capaz de dar conta deste desafio?

Associada a esta decadência física do edificado, está o desprestígio perante aqueles que nos visitam, o declínio de qualidade nas experiências e vivências sociais e humanas, provocadas por um assédio permanente de vendedores, músicos ambulantes, pedintes e outras actividades obscuras, exercidas por "tribos" organizadas e com "territórios" estabelecidos. A imagem que poderá ficar de tudo isto, é a de um povo incapaz de assumir com consciência o seu legado, impotente na sua preservação, indolente na sua vivência, habitando uma cidade desertificada, tratada como "terra de ninguém". Algo entre os clichés caricaturados, como o "Pereira de Oliveira" do Tintim e o "Manuel" de Fawlty Towers.

Agora que se debate a questão da prioridade e da validade das "grandes obras públicas" em momento de grande crise, será possível encontrar desígnio e missão mais urgente do que a recuperação patrimonial e o repovoamento da Baixa pombalina?

Aqui temos um verdadeiro desígnio nacional! Só que, meditando no exemplo também de desígnio que constituiu a Expo, que usufruiu de equipa e gestão com independência, para garantir a continuidade do rigor de planeamento e execução, terei que concluir que tão importante projecto não poderá ficar dependente das vicissitudes e subjectividades dos ciclos políticos. Assim, parece-me como única solução para este desafio, a nomeação directamente pelo sr. Presidente da República de um comissário que, pelo seu prestígio e independência inquestionáveis, ficará garante perante o país e a cidade da execução deste projecto de longa duração.

O presidente de câmara eleito teria que prestar contas no final do seu mandato perante o Presidente da República e os habitantes da cidade de Lisboa, através do seu comissário, do seu trabalho e progressos conseguidos neste desígnio nacional. Perante casos como a intenção de demolir o último palacete da Av. Duque de Loulé (nº 35), a inoperância e a misteriosa irracionalidade da "máquina" camarária atingiram um absurdo tal que, com relação ao último reduto patrimonial do centro histórico de Lisboa, a Baixa pombalina, que, embora decadente, mantém a sua unidade, algo de excepcional se exige de acordo com a urgência, gravidade e a importância da tarefa. Talvez, precisamente neste momento de profunda crise económica e institucional, tenha chegado o momento de nos libertarmos desta "bipolar idade" colectiva, que nos faz oscilar entre a euforia e o desânimo, exorcizando o nosso culto da fatalidade, através do reencontro com uma capacidade de realização agora num tema culturalmente diferente, já demonstrada quando do desígnio da Expo.

Historiador de Arquitectura

Uma fartura de loucuras em Lisboa. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 25/01/2009 in Público.




Uma fartura de loucuras em Lisboa
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Recente e repentinamente fomos surpreendidos por uma súplica ansiosa exprimida pela vereadora da Cultura na CML, Rosalia Vargas, onde pedia ideias, mesmo que fossem loucas. Creio que, no balanço do ano, a vereadora terá largas razões para alívio e contentamento... A total ausência de visão, sensibilidade estratégica e perspectiva cultural na cidade de Lisboa, e a abundância de ideias loucas dominaram.


1. Real Praça do Comércio. Depois de campanhas de "animação" que demonstraram um talento inimitável em conseguir o impossível, ou seja, a transformação de uma das grandes Places Royales da Europa no Campo das Cebolas, seguiram-se as campanhas de iluminação de Natal, que já fizeram correr rios de tinta. Com efeito, a grande axialidade das iluminações apresentou grandes imagens culturais, competindo entre o tema "Barbarela" da Praça do Comércio e do Marquês, e o tema "Barbie-Bela Adormecida" do Rossio. Foram momentos inesquecíveis, só superados pelo momento culminante das ideias loucas, que foi inaugurar o tão esperado retorno do Cais das Colunas, para imediatamente anunciar para Janeiro a transformação da praça num novo estaleiro de obras, depois de anos de obras e milhões de euros que têm que ser devolvidos à UE por incompetência e mau planeamento.

Definitivamente e concluindo, António Costa não sabe o que é uma praça real, não sabe utilizar o potencial de dignidade do seu espaço público nem a imponência da sua arquitectura e demonstra-o todos os dias aos turistas europeus, que teimam em nos visitar.



2. Com o alargamento das responsabilidades dos pelouros, o vereador Manuel Salgado ficou agora com a responsabilidade do licenciamento na área do urbanismo comercial. Responsabilidade não é um termo desajustado, pois é nesta importantíssima área que muito da imagem de qualidade na vivência de um centro histórico reside.

Fazendo a comparação entre a curva ascendente da vivência e da qualidade do comércio no Chiado e a acentuada e progressiva decadência na Baixa, teremos que reconhecer que os mesmos turistas que nos visitam sabem encontrar a loja da Catarina Portas na Rua Anchieta, reconhecem de imediato o atractivo do Largo do Teatro de São Carlos, descobrem o Café no Chiado, etc... Enquanto na Baixa, estabelecimentos com verdadeira qualidade, como a Confeitaria Nacional, tornaram-se "ilhas"

cercadas por comércio híbrido e descaracterizado, bem ilustrado pela ofensiva em massa do fenómeno "Chíndia".

Ao apercebermo-nos que mesmo o eixo fundamentalmente estratégico, que se inicia na Rua da Conceição, passa pela Sé até ao Largo das Portas do Sol, seguindo o percurso do eléctrico 28, zona anteriormente consolidada com comércio de qualidade e antiquários, começa a tornar-se zona de expansão estratégica do híbrido, representado pela "tralha" e quinquilharia pseudoturística "Chíndia", temos que perguntar directamente ao vereador Manuel Salgado o que é que anda a fazer...

Provavelmente ele irá dizer-

-nos que a sua total ausência de estratégia na área do urbanismo comercial, encerra uma atitude subtil de resposta ao tal apelo de ideias loucas da vereadora.



3. Entretanto, a exposição sobre a Baixa Pombalina encerrou, como marco da total inactividade na área fundamental da reabilitação urbana. Vem o vereador Manuel Salgado anunciar a suspensão do PDM, para desenvolver não mais do que obras dispersas e empíricas, sem uma concentração pedagógica e estimulante numa zona. Além disso, por aquilo que conseguimos adivinhar nas imagens relâmpago e sem qualquer explicação que tentámos descodificar nas vídeo montagens dos projectos para o espaço público e intervenções em monumentos nacionais na Baixa, ficámos sem saber qual o grau de rigor das intervenções na perspectiva patrimonial.

Assim, sabemos que no Largo de Trindade Coelho pretende-se retirar o gradeamento na entrada da Igreja de São Roque, com o pretexto de fazer retornar a praça a uma situação original e pura... quando a Carta de Veneza nos diz claramente que o património posterior (gradeamento do século XIX) acumula as memórias de vivência do local.

Poderemos então perguntar... Seguem-se os gradeamentos das igrejas de São Nicolau e de São Julião? No caso da Igreja de São Julião e no plano conjunto com o Banco de Portugal parece que sim, além de que a depuração minimalista nos interiores pretende criar uma abertura envidraçada (!) no canto direito da fachada da Igreja de São Julião.

Definitivamente, desistiu-se totalmente da candidatura da Baixa a Património Mundial e do master plan rigoroso na perspectiva patrimonial, ao nível da imagem histórica, tipologias e materiais que tal candidatura exigia e implicava.

Resta-nos a consolação da promessa de mais ideias loucas na gestão de uma cidade com um potencial histórico, patrimonial e cultural único entregue a eleitos sem capacidade para o reconhecer, valorizar e aproveitar.

Historiador de Arquitectura

Lisboa: a crise da democracia representativa e a cidadania. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 9/11/2008 in Publico.


Lisboa: a crise da democracia representativa e a cidadania.
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Recentemente tomou lugar um encontro onde experientes figuras da história, cultura e gestão de museus denunciaram a ineficácia das instituições responsáveis no que respeita à preservação e gestão do património cultural em Portugal. Isto num momento em que a Europa confirma que, num mundo progressivamente globalizado, o prestígio e o valor único e insubstituível do património europeu constituem a grande fonte de identidade do continente e pólo de atracção privilegiado para o turismo cultural.

O que se espera de um presidente de câmara? Acima de tudo uma visão estratégica para a cidade que garanta continuidade e inovação no reconhecimento e aproveitamento dos seus potenciais e que transcenda durante o mandato as características e os "tiques" do aparelho político. António Costa, utilizando vários álibis, não conseguiu até agora cumprir nenhum dos pontos do seu elementar, modesto e medíocre programa. Por outras palavras, tem sido medíocre, mesmo quando avaliado perante a mediocridade do seu próprio programa. Não se sente uma visão, estratégia, ou linha condutora numa só área que seja...

Perdão! Aqui enganei-me... Tem brilhado como animal político e como homem do aparelho que vê a câmara como plataforma para outros voos futuros. Utilizando a imagem que acompanha este texto reflictamos sobre o caso da "domesticação" e assimilação de Sá Fernandes. Claro que o próprio vereador se tem demonstrado ansioso de integração e bom ouvinte da voz do seu mestre.

No entanto, o mestre não está lá, tal como a imagem demonstra. Não, está na Quadratura do Círculo a "politicar" em direcção à próxima etapa. Mas nós também temos estado nesta posição de ouvintes solícitos de alguém que se tem demonstrado ausente e inoperante para além da voz.

Reflictamos agora nas palavras do Presidente da República: "O que é vivido pelos cidadãos não pode ser iludido pelos agentes políticos." "Quando a realidade se impõe como uma evidência, não há forma de a contornar." Se avaliarmos neste contexto o mandato de Costa em áreas como a reabilitação urbana, o trânsito e estacionamento, os espaços verdes e os cuidados elementares de conservação e limpeza da cidade, que podemos concluir sobre aquilo "que é vivido por nós"? Certamente como algo que é fortemente erosivo para a credibilidade da democracia representativa.

No momento em que escrevo, o desfecho da "rábula" da possível candidatura de Santana Lopes à CML não é ainda conhecido, embora Manuela Ferreira Leite esteja sob escrutínio permanente. Esse escrutínio é determinado pelo facto de uma parte da opinião pública considerar Santana Lopes como alguém que, embora pretenda ter a impulsividade, vitalidade e audácia do "guerreiro", acaba sempre por sucumbir ao hedonismo do efémero, revelando a irresponsabilidade do "menino". O escrutínio é também determinado pelo facto de Manuela Ferreira Leite criar expectativas de rigor e determinação.

Apresentando uma fisionomia saída directamente dos painéis de S. Vicente, raça de navegadores habituados às travessias dos oceanos e dos desertos, espera-se dela que seja guardiã da credibilidade e que não contribua para a erosão da democracia representativa.Aguardam-se os acontecimentos. No entanto, o Presidente da República tem razões para estar preocupado.

Muitos, verdadeiramente interessados em Lisboa, na cidade e no seu futuro, sentem-se cada vez mais afastados e angustiados ponderam se irão mesmo votar. Esta crise está a levar ao fortalecimento da cidadania. Alguns políticos vêem aí uma nova oportunidade de pôr a voz a funcionar.

Esses tentam atravessar a fronteira da democracia representativa, inserindo a vitalidade, a espontaneidade e a liberdade da democracia participativa, "refrescando" os discursos políticos. Criando mesmo movimentos que pretendem ser de cidadania, mas que vão a votos. Ora, se há algo que defina a cidadania é que ela constitui uma plataforma cívica aberta, unindo os participantes apenas através dos temas. A cidadania exerce-se! A cidadania não vai a votos!

Constituem estas afirmações uma apologia para o estabelecimento de um cordão sanitário entre democracia representativa e participativa? Sim, para garantir a qualidade de ambas nas suas vocações específicas. Como condição imperativa para elas, verdadeiramente, através da dialéctica do diálogo crítico e construtivo conseguirem fertilidade e sucesso.

Historiador de Arquitectura

O triunfo do híbrido. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 8/07/2008 in Cartas ao Director / Público.


O triunfo do híbrido

Enquanto as ideias, os conceitos, os planos e as promessas continuam, a Baixa de Lisboa prossegue a sua curva descendente.

Em toda a Europa, nos centros históricos desta importância, é aplicada uma estratégia de planeamento comercial (urbanismo comercial) que determina as características e a qualidade do comércio a instalar por zonas.

Entre nós, continua a proliferar e a aparecer um novo tipo de loja de quinquilharia pseudoturística, onde o triunfo do híbrido se afirma através de legiões de nossas senhoras de plástico, da forma mais híbrida da utilização dos símbolos nacionais e onde muralhas de camisolas futebolísticas invadem os passeios.

Trata-se de uma expansão natural do comércio grossista concentrado no Martim Moniz, em procura de novos territórios e encontrando-os na "terra de ninguém" que constitui a Baixa, instalando os seus postos avançados de comércio retalhista.

Senhor presidente da Câmara Municipal de Lisboa, desafio-o a percorrer as ruas da Baixa e a contar o número destes estabelecimentos já existentes e a avaliar as percentagens desse número por zonas e ruas.

Quando resolver finalmente o que quer fazer com os seus anunciados dois eixos estratégicos (Vitória e Santa Justa), receio que irá encontrar duas consolidadas avenidas com "estatuária" de plástico e "paramentos" de heráldica futebolística em poliester.

Apesar da última surpresa que nos proporcionou, com a instalação de um "templo" de farturas e churros em frente do Palácio da Independência no Rossio, ainda quero acreditar que é mais de que um contabilista queixoso e estupefacto!

É isto o que queremos para o nosso centro histórico? É esta a imagem que pretendemos desenvolver para o exterior? É este o nosso verdadeiro campeonato?

António Sérgio Rosa de Carvalho, Lisboa

Lisboa abandonada, Lisboa caluniada. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 28/04/2008 in Público.





Lisboa abandonada, Lisboa caluniada
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


1 - Lisboa abandonada

Antes das eleições, ilustrei através de um texto no PÚBLICO, "A Baixa e os ciclos políticos", a dicotomia crescente entre a cidade de Lisboa com todo o seu valor e potencial e um mecanismo de ciclos políticos, saturante e impotente.

O projecto para a Baixa, nascido do comissariado, devia ter atingido uma autonomia operacional e desenvolvido um prestígio e uma autoridade cultural que transcendesse os ciclos políticos e assegurasse a sua execução em continuidade, sendo associado à ideia de uma candidatura a Património Mundial e cumprido assim a sua vocação de projecto de interesse nacional.

O que fez António Costa até agora?

Além de umas pinturas em faixas de peões, de uma promessa não cumprida de tolerância zero para as infracções de estacionamento, de uma tímida, desenquadrada e pindérica tentativa de "animação" numa das grandes "Places Royales" da Europa, afirmou-se apenas como guarda-livros queixoso.

Quando visitamos cidades europeias com centros históricos perfeitamente restaurados com grande atenção para detalhes de tipologias e materiais, cheias de vida e cosmopolitismo, pulsantes de vida cultural e empresarial, cidades como Amsterdão, perguntamo-nos o que torna isso possível.

A cidade de Amsterdão, depois da recuperação impecável do seu centro histórico, completamente habitado e utilizado, lançou-se agora num novo objectivo: a limpeza do seu Red Light District, símbolo de Amsterdão como cidade de sexo e drogas, imagem que o seu burgemeester (presidente da câmara) quer destruir, além de recuperar para o quotidiano a zona mais antiga e de alto valor patrimonial da cidade.

Até agora, a um bom ritmo, conseguiu-se a recuperação de 30 por cento da área.

Mas como funciona a democrática Amsterdão?

Cidade protestante, liberal, democrática e mercantilista Amsterdão é ciosa da sua imagem exterior e da importância da eficácia da sua gestão. Assim, as eleições autárquicas elegem o seu corpo representativo de vereadores, representantes através dos partidos políticos da vontade dos cidadãos, mas não elegem o presidente da câmara.

O burgemeester é nomeado pela Coroa por um período que pode abranger vários ciclos políticos, e ele é o guardião dos grandes temas, para a cidade que não podem estar dependentes desses ciclos. Ele representa precisamente a garantia de continuidade da cidade e é altamente respeitado pelos intervenientes na sua posição de au-dessus de la mêlée.

Quanto à Baixa, embora se compreenda a intenção de Manuel Salgado de centralizar as capacidades de decisão e experiência acumulada nas unidades de projecto, acabando com as arbitrariedades e clientelismos das sociedades de reabilitação urbana (SRU) e similares, não é apenas com projectos-âncora pontuados e dispersos que a coisa vai lá.

Usando a metáfora da couture e do design tão na moda, a reabilitação urbana vive mais do "corte e costura" e da "cerzideira" do que da grande tesoura do couturier. E absolutamente necessário eleger uma área estratégica de intervenção, uma "fatia" da Baixa, a fim de desenvolver um projecto-piloto total, onde todas os aspectos de vida na cidade possam ser desenvolvidos: habitar o centro histórico restaurado; viver o espaço público; fazer compras num local que seja simultaneamente "City" e bairro.

Já tinha sugerido o local ideal para desenvolver tal projecto-piloto: o Largo de São Paulo.

Com a sua autenticidade, arquétipo do pombalino. O seu carácter de conjunto, com praça, igreja, monumento central. A sua proximidade do Mercado da Ribeira. Aqui temos a fórmula praça-mercado comparável a Convent Garden em Londres.



2 - Lisboa caluniada

A plataforma-jardim-miradouro de S. Pedro de Alcântara foi inaugurada com circunstância. No entanto, como ela se encontra na fronteira do Bairro Alto, zona de guerra dos graffiti, tem que ser guardada em permanência. Isto, enquanto outro ex-líbris da cidade, o Miradouro de Santa Luzia, se encontra num estado deplorável.

E que tal demonstrar coragem política e enfrentar o manto entorpecedor do "politicamente correcto", avançando com uma ofensiva contra os graffiti no Bairro Alto? Já nem é preciso falar do caso Giuliani de Nova Iorque. Pode ser que com uns filmes no You Tube a coisa vá lá.

Por falar de filmes. O intrépido e confuso paladino agora vereador, mais conhecido por Zé, resolveu também participar num documentário para a famosa e largamente divulgada Al-Jazira.

Críticos somos todos. Há muita coisa a criticar, mas "entre nous". Cá dentro, criticamos abertamente, mas e o sentimento assim impõe, lá fora é "sempre a puxar para cima"!

E não é só uma questão do sentir, é também uma questão de estratégia de imagem e de investimentos. O destemido, agora eleito vereador e portanto ligado às responsabilidades da imagem exterior da cidade, conseguiu uma nova façanha. Com uma só acção, num ápice, conseguiu anular todo o investimento de campanhas como a do West Coast of Europe e outros esforços similares. Aliás nunca tamanha proeza foi alcançada.

Conseguir a custo zero uma campanha de promoção política e pessoal e alcançar um prejuízo de milhares e milhares de euros, se contabilizarmos os custos de todas as campanhas de promoção de imagem do país e da cidade. É obra!

Senhor presidente da Câmara Municipal de Lisboa, será que o Zé ainda faz falta?

Historiador de Arquitectura

Que fazer com o que resta do património arquitectónico do séc. XIX em Lisboa? A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. 28/02/2008 in Público.




Que fazer com o que resta do património arquitectónico do séc. XIX em Lisboa?
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


Ressano Garcia concebeu o traçado das principais linhas urbanísticas do século XIX em Lisboa. Ressano Garcia delineou, mas não concebeu em unidade de estilo ou através duma visão cultural unificada o conceito arquitectónico que iria preencher este traçado, criando os boulevards do século XIX lisboeta.

Enquanto numa grande parte da Europa o século XIX romântico, revivalista e historicista concebia um estilo arquitectónico em síntese, que resultava de uma ideia exultada de um certo "período de ouro" do seu passado, o preenchimento do plano urbanístico de Ressano Garcia, das nossas avenidas, era deixado a uma visão especulativa da geração de Rosa Araújo.

Como consequência desta ausência de visão cultural unificada, enquanto Haussmann em Paris formulava esse estilo, indissociável e caracterizador desta nova monumentalidade de Paris, ou Viena desenvolvia a imagem unificada e monumental do Ring, Lisboa vegetava mediocramente entre prédios de rendimento de qualidade diversa e híbrida e palacinhos e palacetes de uma nova alta burguesia abastada ou de novos "condes-barões" nascidos da nossa pseudo-revolução fabril e industrial.

A Lisboa nascida deste processo apresentava um contraste entre uma incontestável qualidade de concepção de traçado urbanístico e uma ecléctica, variável e dispersa qualidade de concepção e execução arquitectónica.

A qualidade existente nalguns conjuntos ou objectos dispersos nesta malha foi determinada pela geração de arquitectos vindos de Paris e formados pela École des Beaux Arts. Aqui falamos de nomes como Ventura Terra, Norte Júnior, José Luís Monteiro.

No entanto, é o que temos, ou, melhor dizendo, em função do processo de demolição e substituição que se tem desenrolado, é o que tínhamos.

O que tem conseguido resistir a este processo de destruição nesta malha urbanística, que pelas características não unificadas em carácter, escala e estilo já referidas era facilmente "penetrável", foram conjuntos que constituem verdadeiros blocos ou "ilhas" de resistência.

Por exemplo o bloco da Versalhes na Av. da República, que se estende desde a esquina do Colégio Moderno, incluindo o prédio da Versalhes, até à próxima esquina com notável edifício com características arte nova, é sintomático para esta "resistência" numa avenida irreconhecível em todos os aspectos, quando consultamos uma gravura da época original.

Ora, precisamente um outro exemplo deste fenómeno de resistência constituiu até agora o conjunto abrangendo na Alexandre Herculano o notável edifício da garagem, o prédio de Ventura Terra, a sinagoga, e o conjunto da entrada da Rua do Salitre, juntamente com a forma de como o complexo do Palácio Palmela, incluindo a fonte, se insere e determina a escala urbana em função da escala e volumetria da "parede" de edificações do Largo do Rato.

Todo este conjunto urbano constitui uma unidade cultural e patrimonial que se poderá absolutamente classificar nesta categoria de "ilha de resistência".

Em relação ao projecto dos arquitectos Aires Mateus e F. Valsassina, com os seus sete pisos, 10.000 m2 e uma linguagem arquitectónica, independentemente da questão da sua qualidade, compacta e impenetrável, a pergunta a pôr é: é este o local para inserir um edifício com estas características e volumetria?

A pergunta a pôr à CML é: perante este caso e o já aprovado e incompreensível "plano de alinhamento de cérceas", o que pretende fazer a CML com o que resta do património arquitectónico do século XIX (e início do séc. XX) incluindo os respectivos interiores, em Lisboa?

Historiador de Arquitectura

terça-feira, 17 de julho de 2012

Eclipse total no Estoril. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. Domingo 19/8/2007 in Público.





Eclipse total no Estoril
Por António Sérgio Rosa de Carvalho

As consequências das quedas nos voos de Ícaro dos arquitectos são pagas por terceiros


Na história da arquitectura, o conceito Genius loci exprime aquilo que caracteriza essencialmente a sacralidade de um local. Vindo de uma tradição greco-romana, ele é desenvolvido fortemente na arquitectura paisagista do séc. XVIII e pode ser traduzido como "espírito do lugar".

Neste conceito estão contidas as características naturais e fundamentais, topográficas, paisagísticas, geográficas, de um lugar. Deste modo se define, perante a intervenção humana e arquitectónica, aquilo por que o local suplica, exige e clama.

Já há alguns anos, quando se equacionava a possível demolição do Hotel Estoril-Sol, tive a oportunidade de, através de um artigo no PÚBLICO intitulado Sol no Estoril, delírios em Lisboa, apoiar a ideia da sua demolição. Este apoio surgia do facto de eu considerar o Estoril-Sol, embora uma obra de autor, um derivado medíocre em international style de uma unité d"habitation corbusiana, com a conhecida ruptura em tabula rasa com a envolvente e, precisamente, indiferente ao Genius loci do local.

Perante isto, e depois desta demolição, uma responsabilidade acrescida apresentava-se para um projecto alternativo, agora num momento onde os desafios ecológicos e a consciência contextualizante da pós-modernidade, além da necessidade estratégica de prestigiar uma importante zona turística, impunham um projecto duradouro e integrado.

É com preocupação, através de imagens e de um sociologicamente ridículo filme de promoção, que tomámos conhecimento do Projecto Estoril-Sol Residence, da autoria do Atelier de G. Byrne.

Tudo no local clama por uma linguagem arquitectónica integrada em plataformas, terraços abertos, jardins suspensos e varandas em socalcos. O espírito do lugar suplica por "arquitectura na natureza", também na área da sustentabilidade ecológica e na autonomia da climatização, preservadora da paisagem e assim da imagem turística. Numa metáfora comparativa, tão grata aos arquitectos, o local exige o discurso Falling Water de Frank Lloyd Wright [foto].

Em vez disso, vamos ter um projecto baseado numa dualidade, ou mesmo numa dicotomia arquitectura-natureza, numa espécie de linguagem "Seagram" derivada de Mies van der Rohe, mas agora, pelas exigências de contextualização, distribuída pela composição de três volumes envidraçados e herméticos, completamente dependentes da climatização artificial e das consequências que isso implica na área ambiental e energética.

No fundo trata-se de um "arranha-céus Office Park" desconstruído, de forma a torná-lo contextualizado e distribuído em volumes, a fim de o poder classificar como "escultura na paisagem".

As consequências das quedas nos voos de Ícaro dos arquitectos são geralmente pagas por terceiros, sejam eles os habitantes, os promotores ou os autarcas.

Tudo indica que no futuro o único lugar onde se poderá manter a ilusão de uma paisagem marítima intacta, onde estes objectos não existirão, será no próprio interior dos edifícios, agora habitados por pessoas tão ridiculamente tipificadas pelo filme de promoção.

Historiador de Arquitectura

A Baixa pombalina e os ciclos políticos. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho. Domingo 8/7/2007 in Público




A Baixa pombalina e os ciclos políticos
Por António Sérgio Rosa de Carvalho


A classe política vive tempos difíceis. Descredibilizada por uma sucessão de escândalos, ela mostra-se incapaz de se renovar, e perde terreno progressivamente para uma sociedade civil, que se manifesta em crise de confiança na "blogoesfera" e através dos movimentos de "cidadania".

O ambiente vivido nas eleições da Câmara Municipal de Lisboa (CML) é ilustrativo desta crise. Um número excessivo de candidatos disputam um eleitorado extenuado e tornado indiferente e amorfo pela erosão dos acontecimentos.

A "balcanização" das forças políticas na CML e a possibilidade da sua ingovernabilidade através da dispersão de votos e consequente "pulverização" das vontades e capacidade de decisão em minorias rivais só poderiam contribuir para uma continuação do adiamento da cidade e um agravamento dos seus problemas. Além do saneamento das finanças, do restabelecimento da credibilidade através de transparência, da reforma do "polvo tentacular" das empresas municipais e rigor na utilização dos recursos humanos, ficam os desafios da qualidade de vida no quotidiano.

E aqui falamos fundamentalmente do trânsito, estacionamento, qualidade de vida ambiental, vivência humana, dinâmica comercial, reabilitação urbana e consolidação da imagem histórica. Todos estes temas encontram-se reunidos num só desafio fundamental, que constitui o centro de gravidade de toda a Lisboa histórica: A Baixa pombalina.

Acima de tudo, é preciso terminar com o ciclo doentio e erosivo, devorador dos recursos e destruidor das vontades, que tem caracterizado os ciclos políticos... onde cada ciclo procura "reinventar a pólvora" sem conseguir estabelecer uma continuidade que transcenda a "própria política", sem conseguir estar verdadeiramente ao serviço dos temas prioritários da cidade.

É por isso que é absolutamente necessário que destas eleições saia um estatuto para a revitalização, reabilitação patrimonial e repovoamento da Baixa que seja autónomo e transversal aos ciclos políticos e que, nesse sentido, seja renovador da própria forma de estar na política.

Poderão existir algumas questões ainda a discutir na realização do plano, mas o princípio e a constituição da respectiva organização capaz de conseguir concretizá-lo são um imperativo indiscutível.
Historiador de arquitectura

A Brigada do Inox. A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho . Segunda Feira 7/5/2007 in Público.





A Brigada do Inox 


A Baixa, apesar de estar sem gestão e sem estratégia, continua a ser o centro histórico por excelência... Embora seja vista por nós cada vez mais como um "limbo híbrido", os turistas teimosamente insistem em visitá-la (...). Os que conseguem escapar às vergonhosas e miseráveis esplanadas onde cada batata frita tem que ser defendida de bandos de pombos ou vendedores de óculos e droga, lá conseguem encontrar "ilhas" de qualidade patrimonial e identidade local como a Confeitaria Nacional, o Nicola, etc.

"Ilhas" bem dispersas numa "cidade fantasma" onde falta o "elemento aglutinador de vivência", o tal "pulsar dinâmico e cosmopolita" que caracteriza outras cidades europeias. Neste sentido até é grave que a afluência turística esteja a aumentar, pois quantos mais vierem mais serão aqueles que chegarão à conclusão de que Lisboa, apesar do seu potencial, tem pouco para oferecer, numa típica história lusitana do "podia ter sido mas não foi".

Nesta perspectiva, venho também falar de fiscais, da Câmara de Lisboa e da sua actuação nos poucos estabelecimentos típicos que restam no grupo a que costumamos chamar "tascas" ou "casas de pasto". Sem me querer referir, com o perigo de generalização, a possíveis actividades "paralelas" no rigor da sua actuação, diria apenas que esse rigor pode ser caracterizado por um "toque de Midas" que tem o dom de conseguir transformar tudo quanto tocam em "inox". Basta visitar a microscópica Adega dos Lombinhos, na Rua dos Douradores, para nos apercebermos da alienante capacidade de destruição da aplicação de regras globalizantes "à letra", e sem qualquer sensibilidade para tradições locais, valores patrimoniais e autenticidade e identidade cultural. Até o WC é uma cápsula "inox" destacada no espaço do estabelecimento (...).

E agora passamos a um exemplo positivo de sobrevivência e resistência nesta saga do "inox". Estou a falar da apreciada Casa de Pasto Estrela da Sé, no Largo da Igreja de Santo António. Digo "apreciada" pois é visitada por elites culturais, sociais e políticas, mas isso não lhe vale de nada pois não usufrui de qualquer reconhecimento oficial ou protecção. E é aqui que entra o termo resistência.

Pois tem sido graças à consciência cultural dos proprietários e corajosa tenacidade face às investidas da "Brigada do Inox" que a Estrela da Sé ainda pode oferecer a autenticidade tão "apreciada" do seu interior inalterado. Ironia suprema! O Professor, na sua campanha eleitoral, elegeu a Estrela da Sé como o seu restaurante preferido ! Karamba! Professor!

António Sérgio Rosa de Carvalho

Lisboa

O maior Barrete do Mundo ! A Opinião de António Sérgio Rosa de Carvalho Segunda Feira 2/4/2007 in Público.



O maior Barrete do Mundo !
A imagem que este título sugere reflecte uma retórica fácil, ou mesmo populista. A mente é falível. Sobretudo sob o efeito da tortura. Tortura é o estado de espírito em que qualquer lisboeta que ame a sua cidade se encontra perante a situação na CML.

Assim, quando me encontrava no eléctrico, vindo de Belém e ao passar pela Praça do Comércio, no passado dia dos namorados, ao ver flutuando pateticamente um balão em forma de coração, com a pretensão de ser o "maior coração do mundo", a minha mente sucumbiu. Sucumbiu esgotada e trouxe-me imediatamente a imagem de um barrete monumental montado sobre a estrutura metálica da já desaparecida mega-árvore de Natal. Daqueles barretes farfalhudos. Versão "campina-ribatejana" do barrete de Pai Natal. E enfiado na estrutura tal como o barrete de forcado até ao pescoço, naquela condição de estupefacção abrutalhada, que caracteriza o nosso estado de espírito de alfacinhas manipulados e atordoados pelos acontecimentos. Este seria, sem dúvida, o monumento ideal ao nosso descontentamento.

(...) Já sabemos. Lisboa é magnífica no seu potencial. Situação geográfica invejável, luz única, variedade topográfica incomparável, património acumulado através dos séculos ... E de que nos serve tudo isto?

De que nos serve conceber "hotéis de charme", para um turismo civilizado e cultural, se a ilusão de unidade coerente oferecida pelo ambiente dos mesmos não é correspondida na experiência exterior e real? De que nos serve falar continuamente de reabilitação urbana, se mesmo para as nossas pseudo-elites "habitar património" significa, em primeiro lugar, um comando à distância de uma porta de garagem electrónica, significa a destruição de tudo quanto é autêntico num interior histórico e o zunir permanente de "caixotes" de ar condicionado significa "jardim"?

Sim. Já sei . Lisboa no seu ecletismo apresenta uma organicidade e uma variedade colorida que constitui verdadeiro shabby chic. Só que com o estado de decadência, sujidade e falta de manutenção em que a cidade está só resta o shabby. Nada de chic. Para aqueles que não sabem o que significa shabby, eu traduzo, agora não de forma populista, mas popularucha. Significa "chunga".

E os nossos magníficos passeios? Experimentem estudar o seus desenhos preciosos em plena Avenida da Liberdade num dia de espectáculo na rua do coliseu...

Pois é. Temos mesmo que avançar com este novo projecto monumental. O maior barrete do mundo! Vão ver que, com a conhecida criatividade que o "tuga" sempre demonstrou para a venda ambulante, vão logo surgir vendedores oferecendo tais barretes, em versões variadas. Desde o têxtil ao electrónico. E made in Chindia, claro.

António Sérgio Rosa de Carvalho

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Baixa - Chiado ... E Agora ? A OPINIÃO DE António Sérgio Rosa De Carvalho Domingo 3/12/2006 in Público





Baixa - Chiado ... E Agora ?
 A OPINIÃO DE António Sérgio Rosa De Carvalho
Domingo 3/12/2006 in Público


Mais um texto sobre a Baixa e a sua Revitalização. A ilustre equipe de comissários fez bem em denominar o documento apresentado como proposta, pois trata-se de uma visão global, um conjunto de macro-propostas que precisa de descer a plataformas estratégicas de actuação, ao passo-a-passo de acções coordenadas visíveis e capazes de empolgar e entusiasmar.

Como morador da Rua dos Fanqueiros, "entalado em sanduíche" entre o trânsito ascendente da Rua da Madalena e descendente da Rua dos Fanqueiros, a proposta de diminuir em 70 por cento o trânsito de passagem - assim como a de transformar o Convento Corpus Christi num hotel de charme, além de criar um conceito de comércio qualificado por uma garantia de qualidade ou "marca Baixa" - soa-me quase paradisíaca. A questão está em como e a que ritmo ela pode ser alcançada.

Portanto aqui vão algumas reflexões :



O Edificado - Até agora, a garantia da formulação de um conjunto de regras, de uma "gramática de valores e princípios" para a dinamização do conjunto urbano e unidade patrimonial que constitui a Baixa residia na candidatura a Património Mundial. Todos sabemos como a realização da visão de Pombal evoluiu "organicamente", ao longo do século que durou a sua construção, a partir dos arquétipos de Eugénio dos Santos e Mardel para o aumento de volumetrias que caracterizam o "pombalino" do séc. XIX, com os seus andares "extras" de varandas corridas e águas furtadas. Também sabemos como novos edifícios foram introduzidos posteriormente (banco Totta, agência Havas , etc...) . Tudo isto, tal como as notáveis intervenções em estabelecimentos comerciais do séc. XIX "afrancesado" - que só vieram enriquecer a Baixa culturalmente, mantendo a sua unidade cultural como conceito urbano. É (ou devo dizer era ?) esta unidade civilizacional que se pretende candidatar a Património Mundial.

É por isso que acho preocupante a ligeireza com que se fala em demolições de edifícios do séc. XIX menos "puros" e da possibilidade da sua substituição por arquitectura contemporânea de "qualidade", assim como a recusa radical do neo-pombalino.

Também se fala na possibilidade de compartimentação (três fogos por andar) dos interiores pombalinos. Ora todos nós sabemos que há uma grande variedade na autenticidade dos interiores pombalinos ("betonização", alteração estrutural da "gaiola", alteração espacial das divisões originais , etc), mas também muitos interiores de altíssima qualidade e autenticidade sobreviveram. Foi para separar o "trigo do joio" que foram desenvolvidos sucessivos levantamentos pela Unidade de Projecto e depois pela Sociedade de Reabilitação Urbana.



O Horizonte Sociológico - Ao definir o perfil da "clientela" que vai habitar a Baixa dinamizada, cosmopolita e qualificada, ficamos a saber que ela é constituída pela "classe média" e por "jovens". Os "jovens" são definidos com uma sofisticação semântica que os divide em sub-grupos, que nos seu vanguardismo é comparável a um menu pós-moderno de um restaurante de "nouvelle cuisine". Agora sem ironias, onde estão as elites? As elites (grupo que consegue associar o poder de compra a um horizonte civilizacional e à consciência cultural, e que é preciso convencer a abandonar os condomínios), curiosamente, serão a clientela natural dos interiores originais, onde as intervenções necessárias irão primar não apenas pelo respeito, mas pela exultação da autenticidade e do prestígio vintage da "patine".

A Baixa Pombalina terá, no futuro, que incluir todos os grupos sociais, para ser uma verdadeira cidade (city). Foi assim que ela foi orginalmente concebida. A Baixa não é um "bairrozito". Apesar de decadente é uma city curopeia e, para ser verdadeiramente dinamizada e vivida, precisa de todos.

Portanto, os interiores devem ser escolhidos e intervencionados por vocação natural sociológica, num horizonte que inclua todas as representações da sociedade. As características de autenticidade em relação aos valores históricos pombalinos é que devem determinar o grau de intervenção e alteração nos interiores, e consequentemente o tipo e modelo sociológico a ocupá-los, e não vice-versa, com o risco de deitarmos fora a galinha dos ovos de ouro e cometermos um crime irreversível de lesa-património .



O comércio tradicional - Todos nós compreendemos o que se pretende com as duas "sinergias" axiais que se pretende criar na perpendicular das três (ou mais) já existentes. Refiro-me ás duas axialidades transversais constituídas pela Rua da Vitória e Santa Justa. Tudo isto me parece lógico como passo estratégico em direcção ao tão sonhado centro comercial ao ar livre. Só que as "ilhas" de qualidade que restam na Baixa, entregue a um torpor híbrido e a um desespero típico de uma verdadeira crise de identidade, são representadas pelo comércio tradicional instalado em interiores insubstituíveis de alto valor patrimonial e apreciado pelo turismo cultural - e pela internacionalização das marcas de "franchising".

Fora disso, temos a dinâmica permanente do fenómeno "Chíndia", com um comércio específico que, devido às suas características, exige planeamento estratégico e definição de regras de urbanismo comercial. Para se conseguir a tão sonhada marca de prestigio "Baixa" é preciso planeamento. Para já é preciso incluir uma "aristocracia" dentro dela, e aqui refiro-me ao grupo de lojas com interiores de alto valor patrimonial (ourivesarias, livrarias, etc) a que eu daria o estatuto, com placa de bronze e tudo, de lojas de tradição e excelência. A metáfora que se enquadra aqui é a das regiões demarcadas de vinhos. Há lugar para todos. Cada um no seu lugar e na sua especialidade.



Uma Proposta - Se fosse necessário ilustrar a essência urbana do conceito original pombalino nada poderia servir melhor esse objectivo do que o Largo de S. Paulo. Ele constitui, nas suas características quase inalteradas, o arquétipo da síntese Santos-Mardel. Além disso nas tipologias de portas e guilhotinas ainda presentes, dá-nos um "cheiro Georgian" do carácter original. A sua localização, junto aos Halles lisboetas que constitui o Mercado da Ribeira, dá-lhe um carácter único de Convent Garden não aproveitado e não reconhecido no seu grande potencial. Não temos aqui o local ideal para testar e aplicar todas as vertentes definidas pela proposta de revitalização da Baixa Pombalina ?

Aqui e agora no Largo de S. Paulo !

 Historiador de Arquitectura



Made in Portugal Por António Sérgio Rosa de Carvalho Domingo 16/7/2006




Made in Portugal
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Domingo 16/7/2006

Depois de dois anos de ausência voluntária, surjo novamente a manifestar-me nas páginas do Local. A notícia do desaparecimento do Jardim Cinema despoletou o acto. O acontecimento ilustra e confirma um tema fundamental para a cidade, com especial relevo estratégico para o futuro da Baixa: o do comércio tradicional com alto valor patrimonial e detentor de forte identidade emocional e funcional, confrontado com mudanças de função determinadas pela dinâmica da globalização.

Durante a minha estadia na Câmara Municipal de Lisboa (CML), tive a oportunidade de pôr em prática e testar os valores relativos a esta temática e já anteriormente defendidos por mim nas páginas deste jornal. A oportunidade surgiu quando um estabelecimento com importantes características patrimoniais e completamente preservado na sua autenticidade ao longo de três gerações, a Alfaiataria Rosado Pires, na Rua Augusta, foi comprado por uma poderosa multinacional italiana de lingerie feminina. O desafio que se punha era: como persuadir os promotores a abdicarem da sua imagem estabelecida e a reconhecer o alto prestígio e a mais-valia emanante de uma imagem cultural completamente preservada?

Para Lisboa e para a Baixa isto representava, na dialéctica entre identidade local e globalização, uma síntese vitoriosa entre mudança e preservação de valores fundamentais, que constituem uma mais-valia insubstituível para o turismo cultural. Este sucesso foi determinado por um diálogo permanente com membros da Unidade de Projecto da Baixa-Chiado e por um diálogo construtivo com o Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) e, claro, com as entidades promotoras. Mas, acima de tudo, o que este processo ilustra é o de um método oposto ao do governo por decreto. Inspirado por este caso, quando a segunda oportunidade surgiu, agora em plena Rua Garrett, na antiga Perfumaria Pompadour, com projecto de Raul Lino mas que não tinha sido classificada pelo Ippar tal como a Gardénia, também do mesmo arquitecto, o único desfecho só podia ser uma vez mais o sucesso.

Foi aí que, agora em profunda colaboração com o pelouro da Cultura e com o Núcleo de Estudos de Património, importante departamento da CML incompreensivelmente "neutralizado" pelo actual executivo, se começou a desenvolver um projecto sistemático de classificação de lojas tradicionais, que iria garantir a sua preservação perante os desafios descritos neste texto e o compasso de espera que se vive na Baixa. Inexplicavelmente, o Ippar recusou este Projecto de Classificação Municipal das Lojas Tradicionais da Baixa que constam no inventário municipal do património.

Do grupo de importantes interiores propostos para classificação fazia parte a Ourivesaria Aliança, estabelecimento com um valor patrimonial, sem exagero, comparável ao do Café Majestic, no Porto, agora reconhecido por todos como importante "âncora" da cidade para o turismo cultural e fonte de orgulho da identidade local. Ora, a Ourivesaria Aliança, na Rua Garrett, funciona irregularmente e bate-se com problemas de preservação determinados pelo estado de conservação do edifício, que entretanto mudou de proprietário. Daí - e esta é a razão fundamental deste texto - eu fazer aqui e em público, como morador na Baixa, como cidadão português e como historiador de arquitectura, um apelo directo ao Ippar para classificar a Ourivesaria Aliança na sua totalidade (fachada e interiores) como Imóvel de Interesse Público! Existe já, pelo anterior descrito, um dossier suficientemente completo para abrir um processo de classificação.

Isto poderá reactivar novamente o processo num fenómeno de "bola de neve" que, na sua abrangência, iria contrariar o torpor medíocre e o ambiente de "terra de ninguém" que impera neste interlúdio de expectativa sobre as conclusões estratégicas do Comissariado da Baixa-Chiado. O comissariado já anunciou as suas grandes linhas estratégicas, que criaram expectativas: projecto de desígnio nacional, representado por uma entidade única de gestão e, acima de tudo, garantia de transcendência dos ciclos políticos e das flutuações da "partidocracia". Também já anunciou, em linhas gerais, a sua visão estratégica para a área dos desenvolvimentos urbanísticos. A história ensina-nos que sem uma visão global, sem grandes legisladores, não existem grandes sucessos. Mas enquanto o "macro" espera pode-se intervir no "micro", mais que não seja para ir chamando a atenção para a importância que esta dimensão de vivência quotidiana tem para uma zona que quer reencontrar o seu equilíbrio entre área residencial, city e centro histórico.

Não há campanhas do ICEP que compensem a impressão deixada no turista pela Rua Augusta, atravessando em busca do glorioso arco "barreiras" sucessivas de check-points de inquéritos, vendedores e pedintes. Ou o terreur exercido pelos músicos ambulantes em tudo quanto é esplanada. Agora que sublimámos tantas frustrações, que depositámos tantas esperanças nas aventuras dos nossos "gladiadores" na Germânia, é importante lembrarmo-nos que é em cada dia, no aqui e agora, que o nosso futuro, o futuro do nosso espaço vital, da nossa identidade, é determinado. Historiador de Arquitectura

A Pequena Dorothy e o Grande Feiticeiro Por António Sérgio Rosa de Carvalho Terça Feira 19/2/2002




A Pequena Dorothy e o Grande Feiticeiro
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Terça Feira 19/2/2002

Todos conhecemos o momento revelador no famoso "Great Wizard of Oz", em que a pequena Dorothy e o conhecido elenco de acompanhantes - ilustrador de diversas inseguranças e buscas humanas - são confrontados com o facto de que, afinal , o "Great Wizard" não é mais que um comum dos mortais , escondendo as suas próprias inseguranças na manipulação, através do mito.A mensagem é clara : sê autónomo, conhece-te e confia em ti próprio. Tal como uma conhecida cançonetista americana apregoa: em cada um de nós, no mais profundo do nosso íntimo, reside um herói .E se a pequena Dorothy, fascinada por sua vez pela revelação do poder reencontrado, lhe toma o gosto? Depois de, no "Senhor dos Anéis", termos visto a mais angélica das princesas dos Elfos quase sucumbir, tememos o pior. Já Platão numa autocrítica, nos avisava retoricamente: e quem controla os reis filósofos ? Para alcançar um equilíbrio justo de "vontades" , a sociedade delegou a salvaguarda dos valores de justiça a Instituições que têm como missão legislar, punir os infractores, estimular as virtudes.Passemos agora a um caso concreto, a destruição total de um interior classificado e referido num inventário camarário: a antiga Casa Vianna, na Rua da Prata, 61/63, em Lisboa.Já sabíamos que nos tínhamos exercitado na autodestruição e no exorcismo histórico, empenhando-nos supreendentemente, num período onde a urgência de reequilíbrio entre o global e o especifico é reconhecido por todos, em destruir sistematicamente todas as nossas referências de identidade. O que surpreende também (nós somos civilizados, não nos indignamos) é que a radical obra de destruição deste templo das rotas do café e do chá tomou lugar sem licença, informando o Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) que o projecto aqui apresentado se referia somente "a obras de interiores, como a instalação de sanitários, pequenas reformulações morfológicas sem implicações quanto à caracterização do miolo", que "previam a recuperação da fachada".Moral da história : se alguém alérgico a contorcionismos decorativos neo-rococó e adepto das harmonias abstractas dos horizontes minimalistas pedir uma licença para alterar a preciosa casa de banho das senhoras na Casa do Alentejo (conhecem ?), isso poderá levar a "pequenas reformulações morfológicas sem implicações" - ou seja, à destruição de todos os notáveis interiores deste antigo Clube Social (Majestic), que sobreviveu, por milagre, na sua glória ecléctica "degradé", entre vestíbulos neo-árabes e "salons" II Empire.Agora que "novos ventos" sopram, e novos objectivos são definidos para a cidade de Lisboa, chegou o momento de definir e institucionalizar juridicamente uma legislação de salvaguarda de interiores. Neste momento em que tanto se fala de "descentralização" , e em que a câmara se propõe em desenvolver um projecto global de recuperação e restauro para as zonas históricas de Lisboa - que forçosamente terá que ser precedido por um exaustivo trabalho de inventariação, edifício a edifício, nos exteriores e interiores, formulando uma rigorosa filosofia de intervenção - chegou talvez o momento da autarquia tomar a iniciativa e "estimular" o Ippar, "dinamizando" o acordo de cavalheiros existente .A melhor estratégia para, no caso da Baixa, garantir a salvaguarda de todos os notáveis interiores históricos - detentores de grande potencial habitacional - desenvolvidos ao longo do séc. XIX , é classificar a "gaiola". Se não for possível no património mundial, então que seja no nacional, que nós não somos parolos... ou seremos ?Debruçemo-nos sobre o já famoso "casus" (eu não me conformo) Ramiro Leão.Com objectivos culturais, dignos da mais iluminada "gauche caviar", a anterior autarquia cedeu, por quantia apetecível, o ENTÃO intacto Ramiro Leão (que seria, ENTÃO, um dos primeiros elementos da ainda não existente lista de monumentos nacionais de arquitectura de interiores) ao famoso sr. Benetton.Não me cabe a mim julgar o sr. Benetton, que se tem mostrado nas suas campanhas publicitárias hábil "manipulador de mitos". Ele está no seu papel de "Great Wizard ", e nós no nosso, de "Pequenas Dorothys" . Daí a necessidade que alguém nos proteja - a tal instituição. O sr. Benetton faz apenas e só aquilo que o deixam fazer. Se a legislação que protege os interiores em Bolonha, Veneza ou Florença é rigorosa...Agora temos que relativizar a presença nocturna permanente de uma fachada LEGOlizada (em vez de legalizada), que domina "electricamente" a envolvente, transformando, numa inversão de valores, o Paris em Lisboa e o David e David numa excentricidade.
Historiador de Arquitectura.

Arquitectos, património e a síndroma criadora Por António Sérgio Rosa de Carvalho TERÇA-FEIRA 27/11/2001 IN PÚBLICO



Arquitectos, património e a síndroma criadora
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
TERÇA-FEIRA 27/11/2001 IN PÚBLICO

Foi-nos anunciado que, no próximo dia 29 de Novembro, irá tomar lugar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil um encontro que pretende discutir o futuro da Baixa como conjunto patrimonial, eventualmente propor a sua classificação como Património Mundial e sensibilizar a opinião pública.Simultaneamente, fomos também confrontados com uma surpreendente proposta de arquitectos e engenheiros para cobrir a Baixa com uma estrutura retráctil. Será esta a melhor maneira de sensibilizar a opinião pública para o imperativo de uma recuperação da Baixa à altura da sua importância histórica e da urgência do seu repovoamento?Francamente, depois do programa de valorização de Lisboa Valis e do elevador do castelo, já nada nos surpreende. Mas pensávamos que os arquitectos e os engenheiros se tinham deixado destas coisas...Talvez a próxima proposta seja a concretização da utópica cúpula geodésica de Buckminster Fuller, mas agora cobrindo Óbidos, tipo campânula transparente a envolver bolo em confeitaria Pompadour.Tudo isto é ilustrativo da confusão que reina em terras lusas no que respeita às definições delimitadoras do que é um arquitecto de restauro e do que é um arquitecto criador. Dos limites impostos pela pertença colectiva do património arquitectónico, como teatro de memória, à síndroma criadora do arquitecto.É preciso dividir as responsabilidades. Uma parte da culpa reside nos arquitectos. Outra parte nas instituições oficiais de defesa do património, exercendo ou não a sua responsabilidade disciplinadora. Uma outra parte no sistema de ensino, onde a consciencialização histórica dos futuros arquitectos não é feita por historiadores de arquitectura (licenciados na perspectiva de Letras e, portanto, não sofrendo da síndroma criadora), mas por arquitectos subjectivamente autodidactas nas áreas históricas. Nos países do Norte da Europa, o ensino da História de Arquitectura é exercido por historiadores (de arquitectura). As outras áreas - projecto, estruturas - por arquitectos, engenheiros. Um arquitecto de restauro é formado exclusivamente com uma especialização nesse sentido, e geralmente só faz restauro. É detentor de um código que aplica com rigor ético.Em Portugal, a XVII Exposição Europeia deixou-nos com um festival de intervenções ambíguas. A Casa dos Bicos foi aumentada, baseando-se correctamente nas fontes iconográficas posteriores à época, mas não sem se ter feito um "abrilhantamento criativo" das janelas, num álibi "patrimonialmente correcto", mas que esconde atrás do argumento da Carta de Veneza uma síndroma criadora. Isto para não falar da fachada das traseiras, que apresenta a qualidade de uma agência bancária de província, ou do interior, "pioneiro" de simbolismos e dinâmicas protodesconstrutivas. Seguiram-se as irresponsáveis coberturas dos Jerónimos e da Torre de Belém.Para não nos alargarmos, ficaremos por um último exemplo: a própria Casa dos Arquitectos, templo ou cabana primitiva de exemplos e virtudes, emanando referências didácticas. Isto é, a transformação dos Banhos de S. Paulo em sede da ordem. Está bem, não se tratava propriamente das Termas de Caracalla, mas apenas de um modesto - mas raro - exemplo do neoclassicismo em Portugal. O "restauro", ou recuperação, levou à total destruição do interior do edifício e à total alienação do exterior. E eu que pensava que um f+bpedimentof-b era uma referência de virtudes cívicas e um arquétipo tectónico... afinal é uma moldura para espelhos de barbear. Ou será detentor de um simbolismo mais profundo, dirigido à memória das manipulações científicas e militares de Arquimedes ? Andávamos preocupados pelo misterioso caso da Quinta da Bacalhoa, que, na sua gravidade, só pode ser comparado à destruição de uma parte da Torre de Belém. Mas tranquilizaram-nos pela atitude firme no golfe das Amoreiras. Andávamos preocupados por nos sentimos secundarizados, desconvidados ou mesmo ignorados na Europa. Afinal, podemos consolar-nos com o reconhecimento da nossa criatividade única.Mal acabámos de acordar para o verdadeiro pesadelo, ao reconhecermos que os nossos centros históricos constituem o último reduto de resistência à destruição e ao caos que nos rodeiam, e já estamos a propor uma "Manhattan" de Cacilhas. Ainda não definimos a tal filosofia global, coerente, unificada e rigorosa para a intervenção na Baixa, e já estamos a propor coberturas surrealistas. Perante o desafio do caos urbanístico e das inqualificáveis periferias, verdadeiras "bombas-relógio", um programa de tertúlias resolveu convidar ilustres participantes.Num rasgo de criatividade, ilustrando uma leviandade pós-moderna própria daqueles que usufruem do dom da graça todos os dias, um dos seus representantes deixou-nos com uma conclusão profunda e uma imagem inspiradora. Referindo-se à superioridade das nossas cidades sobre as "civitas" do Norte da Europa, que estão prisioneiras e sofrem dos horrores da civilização, rematou: "As nossas são mais rascas, mais ordinárias, mais mulatas." Palavras para quê ? É um artista português.

                                           Historiador de Arquitectura

Algumas considerações alfacinhas Por António Sérgio Rosa de Carvalho* Domingo 4/11/2001 in Público



Algumas considerações alfacinhas
Por António Sérgio Rosa de Carvalho*
Domingo 4/11/2001 in Público
Em Lisboa, apesar das promessas de vários autarcas, a batalha para a preservação do património do séc. XIX , o património das avenidas e dos nossos "boulevards" está prática e definitivamente perdida. Por todo o lado os prédios de oitocentos que ainda restam são vistos ao abandono, com as janelas dos andares superiores abertas, afim de que o processo de deterioração se acelere. Apesar de tudo o que se tem dito, as alterações e demolições continuam, com a perda de todos os interiores, que têm grande potencial habitacional. Basta olhar para a Fontes Pereira de Melo, onde tudo o que resta está à espera de ser demolido.Há pouco tempo mais um edifício foi demolido, alguns números abaixo do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade, sempre com a falsa atitude de, depois da demolição total do notável interior, manter a fachada, numa mentira patrimonial a que se chamará mais tarde recuperação.Toda a Baixa Pombalina, na sua unidade arquitectónica, surge como um conjunto urbano coerente na perspectiva patrimonial, apresentando um potencial habitacional único e não aproveitado, e constituindo, com algumas "bolsas" de bairros históricos, o último reduto de resistência à destruição sistemática da cidade. A Baixa apresenta todas as verdadeiras características de uma verdadeira cidade, com praças emblemáticas pontuadas com monumentos referência de identidade local e nacional e constituindo estímulos de virtudes cívicas e comunitárias.Todo o período de oitocentos preencheu as ruas da Baixa de um comércio tradicional com interiores de grande valor patrimonial que é urgente classificar, para preservar, e que têm vindo a desaparecer progressivamente, por mudança de hábitos quotidianos ou por uma falta de consciência que se torna criminosa .Ainda há pouco tempo, sem que alguém notasse, na Rua da Prata, um dos últimos redutos da venda do chá e do café, a Casa Viana , foi totalmente destruída para aí instalar um vulgar estabelecimento de cafés Delta. Para um futuro repovoamento da Baixa, para a garantia de uma vida de bairro e de um quotidiano de vida em comunidade, o comércio tradicional é indispensável.A Baixa precisa de um levantamento sistemático, capaz de formular um Plano Global de Intervenção e Recuperação Unificado, acompanhado de um Plano de Pormenor detalhado que defina os princípios de intervenção a todos os níveis e em todas as áreas.Nestas últimas tão anunciadas intervenções não é isso que está a acontecer. Todo o centro histórico, com praças tão importantes como o Rossio ou a Praça da Figueira, está a sofrer intervenções de autorias diferentes, com filosofias de intervenção distintas.A desagregação caótica e destruidora já chegou à fronteira imediata da Baixa. À porta das traseiras da Baixa encontra-se o maior desafio de recuperação como espaço público: o Martim Moniz. Depois de ter sofrido uma demolição radical nos anos 50 sofreu ainda duas intervenções desastrosas através da construção dos centros comerciais... desastre culminado pela confirmação e extensão de um grande erro arquitectónico e urbanístico, o Hotel Mundial, que só tem servido como barreira natural para impedir que o papel desagregador do Martim Moniz penetre pela Baixa através da Praça da Figueira.Na Praça da Figueira impunha-se uma composição clássica, seguindo o arquétipo pombalino do Largo de S. Paulo, centralizado , e assumindo assim sem complexos o valor do monumento equestre de Leopoldo de Almeida na sua posição central.Este principio simétrico - contrário ao principio assimétrico utilizado por Daciano Costa, que pretende fazer também vários "abrilhantamentos " tipo mobiliário urbano de "designer"- artista - convidado - iria transformar a Praça da Figueira num ponto de resistência à penetração ou à "invasão" do caos e decomposição do Martim Moniz na Praça da Figueira .Como tudo foi preparado em grande secretismo e não nos perguntaram nada, assim como no caso das "baratas viscosas" que populam a Praça do Município - transformando, numa inversão de valores perversa , o pelourinho numa excentricidade - ou sobre o famoso monumento ao 25 de Abril no alto do Parque Eduardo VII -transformando o terraço num local que parece que foi alvo de um ataque terrorista -, a Praça da Figueira vai ser transformada num local onde a decomposição e a desagregação se irão tornar vizinhas imediatas do Rossio, em nome do "frisson" assimétrico de um "designer" de mobiliário transformado em urbanista .Quanto ao Rossio , a intervenção é mais correcta justamente porque assume, numa atitude de bom senso, o legado patrimonial da memória histórica , recriando a placa central em pavimento tradicional e dando prioridade às áreas pedonais , disciplinando o trânsito automóvel numa antevisão daquilo que inevitavelmente se vai tornar na atitude global futura para a cidade, seja qual for o autarca.Embora a "lavagem à cara" das fachadas seja sempre agradável e efectiva no aspecto visual, a pressa eleitoral da necessidade de "apresentar obra" deixou-nos a nossa praça nobre com as coberturas pejadas de abarracamentos em betão e tubagens técnicas que iríamos classificar de surrealistas se não conhecemos o "síndroma Brandoa" que domina misteriosamente este país, que se empenha , no presente, em se auto-destruir. Aliás este fenómeno é ilustrativo de uma "doença de pele" que domina todo o centro histórico, invadido nas suas fachadas por grupos de caixotes de ar condicionado pendurados , como um "acne" contagiante. Já agora convém também reconhecer , a correcção da sóbria intervenção no Largo de Camões.Na reabilitação da Baixa é recomendável um grande rigor histórico, além de uma definição rigorosa de materiais , texturas , paleta de cores e elementos históricos.Os investimentos só poderão ser compensados e justificados por uma qualificação social que transporte em si a garantia de grau de consciência histórica.Desde 1978 , a Baixa está classificada como Imóvel de Interesse Público (!!!)... uma das maiores excentricidades para um conjunto urbano desta importância e envergadura . É preciso desenvolver legislação para classificá-la na perspectiva de conjunto urbano como Monumento Nacional, protegendo as suas características únicas.Uma última sugestão: ao classificar a "gaiola", a tal estrutura anti-sísmica que faz a diferença no estilo pombalino, como Património Mundial ir-se-ia garantir a conservação de todos os interiores pombalinos detentores de um potencial habitacional único e insubstituível.*Historiador de Arquitectura